A xenofobia não tem função ideológica:é um instrumento de classe

Annie Lacroix-Riz

Esta in­dig­nação contra a ig­no­mínia é lí­rica e co­mo­vente, mas convém re­cordar que a xe­no­fobia, bran­dida pela ené­sima vez em França, não tem função ide­o­ló­gica: pra­ti­cada com in­ten­si­dade em tempos de crise, com uma efi­cácia par­ti­cu­lar­mente te­mível nos países co­lo­ni­za­dores (a França já o foi e ainda o é de facto), ela ca­rac­te­rizou o fim da Ter­ceira Re­pú­blica, em par­ti­cular a era Da­la­dier-Rey­naud, e in­sere-se ple­na­mente na luta pelo es­ma­ga­mento dos sa­lá­rios – quer dizer pela ma­nu­tenção e até mesmo au­mento dos lu­cros tor­nado pos­sível pela di­visão dos as­sa­la­ri­ados (entre mu­lheres e ho­mens, es­tran­geiros e fran­ceses, jo­vens e ve­lhos, etc.).

«Pre­ci­samos tanto senão mesmo mais de lu­cidez so­ci­o­e­co­nó­mica e po­lí­tica (e de co­nhe­ci­mento frio da his­tória) como de in­dig­nação épica»

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A xe­no­fobia ob­teve o aval, então ofi­cial, da «es­querda go­ver­na­mental», que es­tava pre­ci­sa­mente «em fun­ções», di­fe­rença (uma das únicas) com a si­tu­ação ac­tual (es­tamos ac­tu­al­mente na fase de as­salto do tipo Dou­mergue-Laval), e que, por con­se­guinte, tomou a ini­ci­a­tiva ofi­cial.

Ora, a re­fe­rida ini­ci­a­tiva foi di­tada pelas po­tên­cias do di­nheiro – a Câ­mara de Co­mércio de Paris, alta ins­tância do grande ca­pital francês, feudo da Con­fe­de­ração Geral do Pa­tro­nato Francês (CGPF), an­te­pas­sado do MEDEF, que di­tava a Da­la­dier e aos seus mi­nis­tros os seus textos de 1938-1940 contra os es­tran­geiros em geral e os ju­deus es­tran­geiros em par­ti­cular. Digo di­tava, stricto sensu, como se van­glo­riava então o pre­si­dente da dita câ­mara na frente dos seus man­dantes em as­sem­bleia-geral (provas es­critas tes­te­mu­nham-no, visto que com­pa­rava os textos sub­me­tidos aos mi­nis­tros com os de­cretos fi­nal­mente adop­tados) [1].

É também esta a di­mensão es­sen­cial da luta ac­tual contra os fun­ci­o­ná­rios pú­blicos, lei LRU in­cluída, cujo al­cance estes não en­ten­deram.

O des­tino do nosso mo­vi­mento de­mons­trou-o em 2009. Na uni­ver­si­dade houve a ten­dência para acre­ditar que a ofen­siva that­che­riana era ide­o­ló­gica, im­pu­tável a um anal­fa­beto ig­no­rante das le­tras (uma coisa não im­pede a outra: para in­carnar a luta contra o in­te­lecto mais vale es­co­lher outra coisa que um ilustre le­trado), e posta em prá­tica por uma ad­mi­nis­tração débil, através de re­formas «ab­surdas» (eli­mi­nação das lín­guas vivas na for­mação de pro­fes­sores de lín­guas,* e ou­tras fan­ta­sias da mesma massa, que es­tu­pidez!).

Quando, em cima, se quer des­truir tudo, pra­tica-se uma po­lí­tica de apa­rência ab­surda, que con­fronta as suas ví­timas de baixo com uma in­com­pre­ensão total, como por exemplo a se­mana de seis dias e as 48 horas se­ma­nais le­gais, res­ta­be­le­cidas em No­vembro de 1938 numa França onde a média da se­mana de tra­balho era de apro­xi­ma­da­mente 36 horas. O que Naomi Klein qua­li­fica de «es­tra­tégia do choque» tem uma longa his­tória na guerra so­cial, a qual não de­corre nem dos sen­ti­mentos nem dos es­tados de alma que estão no co­ração do ge­ne­roso texto ci­tado por Ophélie Hetzel.

Ge­orges Sa­doul, no seu Diário de Guerra, cita o caso da su­pressão do des­canso do­mi­nical «por um grande banco» pa­ri­si­ense, des­canso subs­ti­tuído por «dois meios-dias de folga que nunca po­de­riam ser go­zados juntos num só dia», o que so­bre­car­regou as fa­mí­lias, «so­bre­tudo as mu­lheres». Quando a jovem se­cre­tária «ca­tó­lica bem-pen­sante [e…] bem edu­cada» do es­ta­be­le­ci­mento re­clamou ao seu sub­di­rector, em 1939, o re­gresso ao des­canso do­mi­nical, ar­gu­men­tando que «o banco não fun­ci­o­naria pior. Porquê então tomar uma me­dida tão de­su­mana?», ele es­car­neceu: «”Mas porque agora estão à nossa mercê, minha pe­quena”» [2].

O as­salto contra as pen­sões foi lan­çado não porque vi­vemos mais tempo, mas porque «a re­forma» é par­ti­lhada pela di­reita su­pos­ta­mente «re­pu­bli­cana», a ex­trema (da qual a pri­meira já não se dis­tingue mais) e «a es­querda go­ver­na­mental», que a subs­creveu quando es­tava «em fun­ções» e se em­pe­nhava nos tra­tados «eu­ro­peus». Ele vai levar-nos às re­formas de mi­séria an­te­ri­ores à guerra, e tem exac­ta­mente a mesma função que a gi­gan­tesca in­jus­tiça fiscal, a caça aos es­tran­geiros, o com­bate ao es­ta­tuto da função pú­blica (daqui em di­ante se­ri­a­mente en­ce­tado), etc.

 

O ca­pi­ta­lismo não trai as suas ideias

 

Quando nós pró­prios e as nossas or­ga­ni­za­ções de de­fesa re­a­tarmos aquelas aná­lises que eram cor­ren­te­mente feitas, du­rante a crise sis­té­mica dos anos 30, pela fracção ra­dical, hoje muito en­fra­que­cida, do mo­vi­mento ope­rário – e com a acção cor­res­pon­dente, bater-nos-emos mais efi­caz­mente contra o ini­migo comum dos ci­ganos, fran­ceses ou es­tran­geiros, dos es­tran­geiros (po­bres, não ricos) em geral e de nós pró­prios. O ca­pi­ta­lismo em crise não «trai [as suas] leis» agindo como o faz ac­tu­al­mente, antes põe-as em prá­tica como nas crises de 1873 e 1929-1931.

A di­reita fas­ciza-se hoje como se fas­cizou entre as duas guerras, a es­querda go­ver­na­mental «[não] baixa os olhos», mantém-se fiel a si mesma, pri­vada de po­lí­tica de subs­ti­tuição, porque não dispõe de ne­nhum meio contra o grande ca­pital, que a con­trola em larga me­dida: é um facto, não uma ava­li­ação ide­o­ló­gica – aqueles que du­vidam apenas têm de fazer um longo es­tágio nos fundos das In­for­ma­ções Ge­rais, sé­ries B/​A e G/​A, nos Ar­quivos da Pre­fei­tura de Po­lícia, ou do Mi­nis­tério do In­te­rior, na série F7, nos Ar­quivos Na­ci­o­nais, que po­derá con­duzi-los até um pe­ríodo bas­tante re­cente em certos pro­cessos li­gados à for­mação pro­fis­si­onal.**

Esta es­querda con­ven­cida de que o ca­pi­ta­lismo de­corre da mesma fa­ta­li­dade que a chuva e o bom tempo não criará ne­nhuma al­ter­na­tiva em 2012, é ela pró­pria que o re­co­nhece, aliás com grande sim­pli­ci­dade, e o [jornal] Le Ca­nard en­chaîné [3] não é o único a dizê-lo, sendo que já Da­la­dier, chefe do Par­tido Ra­dical, fingiu virar à es­querda antes das elei­ções da Frente Po­pular.

Em 1936, a po­pu­lação fran­cesa, ou «o povo de es­querda», ig­no­rava que Blum e Vin­cent Au­riol ti­nham ob­tido o seu pro­grama so­ci­o­e­co­nó­mico do Banco de França e de ele­mentos fran­ceses (oriundos do Banco de França) do Banco de Com­pen­sa­ções In­ter­na­ci­o­nais.

Não temos a des­culpa de ig­norar hoje que o Par­tido So­ci­a­lista, mesmo entre os ad­ver­sá­rios pes­soais do Sr. Strauss-Kahn, não tem outra po­lí­tica que a que é di­tada pelo FMI – ou seja pelo clube cons­ti­tuído desde Julho de 1944 pelas classes di­ri­gentes dos nossos países e dos Es­tados Unidos, ga­rantes em úl­tima aná­lise e até nova ordem do cofre forte das pri­meiras.

 

Re­criar ins­tru­mentos de de­fesa

 

En­quanto con­si­de­rarmos que abordar estas ques­tões sig­ni­fica «sair do quadro da de­fesa sin­dical» ou afins con­ti­nu­a­remos a perder com a mesma re­gu­la­ri­dade que temos per­dido, sem in­ter­rupção, desde há 30 anos. De resto, a vi­tória so­cial de 1936 não foi elei­toral – o pro­grama so­cial e eco­nó­mico de Blum era o da aus­te­ri­dade fi­nan­ceira do Banco de França – mas deveu-se ex­clu­si­va­mente à acção de Maio-Junho de 1936 dos tra­ba­lha­dores fran­ceses, fa­vo­re­cida pelos «uni­tá­rios» e com­ba­tida pela mai­oria dos «con­fe­de­rados» (dos quais as nossas ac­tuais «di­rec­ções sin­di­cais» são quase sem ex­cepção suas her­deiras); foi ela que deu uma trégua real às fa­mí­lias de imi­grantes, ví­timas desde o início da crise de uma ver­da­deira per­se­guição, no­me­a­da­mente po­li­cial, trégua in­fe­liz­mente muito breve. «A es­querda go­ver­na­mental» muito ra­pi­da­mente após este grande su­cesso mal pre­ser­vado pre­parou em grande me­dida a via para Vichy, in­clu­sive em ma­téria de imi­gração, afir­mação, su­blinho-o, ab­so­lu­ta­mente não po­lé­mica.

Glo­bal­mente, somos nós que, cer­ta­mente sem o querer, traímos os nossos pró­prios in­te­resses em pro­veito dos que nos fazem frente, os quais não traem nunca os seus, porque são ser­vidos por man­da­tá­rios efi­cazes, es­tri­ta­mente con­tro­lados (nós não po­demos dizer o mesmo), que não cessam nunca de «ra­ci­o­cinar», ou seja, cal­culam todos os seus golpes, ao mi­lí­metro (fun­ciona en­quanto não nos me­xermos). Nunca ab­dicam. Até agora, só no campo dos tra­ba­lha­dores a ab­di­cação reinou. Não há «cleros» em geral, há «cleros» que servem in­te­resses de classe, e os que nos so­bre­car­regam, re­du­zindo os nossos sa­lá­rios di­rectos e in­di­rectos, es­co­lhem, para nos fazer aceitá-lo, e têm toda razão, aqueles e apenas aqueles que lhes são de­vo­tados. Só nos resta re­criar os ins­tru­mentos de de­fesa que de­vol­verão vi­si­bi­li­dade e eco aos «cleros» que servem o nosso campo. E aqui há um longo ca­minho a per­correr.

Pre­ci­samos tanto senão mesmo mais de lu­cidez so­ci­o­e­co­nó­mica e po­lí­tica (e de co­nhe­ci­mento frio da his­tória) como de in­dig­nação épica (re­lendo Os Mi­se­rá­veis, re­co­nheço, con­tudo, aquilo que de­vemos aos im­pulsos de Victor Hugo, e ad­miro o va­lente Baudin, que de­clarou: «Vão ver como mor­remos por 25 francos [por dia]!», antes de se en­tregar ao fogo dos gol­pistas de De­zembro de 1851).

Impõe-se na­tu­ral­mente as­sinar todas as pe­ti­ções de de­fesa dos ci­ganos, o que fiz, como todos nós, sem dú­vida. Mas de­fendê-los-iamos me­lhor, bem como à mai­oria das pes­soas que vivem na França, a nós in­clu­sive, tendo em conta o que está para trás e re­nun­ci­ando a so­nhar com 2012 [elei­ções pre­si­den­ciais em França (NR)], sonho que pode tornar-se em pe­sa­delo. Ver o caso grego, es­pa­nhol, etc.

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[1] cf. o ar­tigo pu­bli­cado no re­cen­te­mente de­funto Siné Hebdo em Maio de 2009, «”A caça aos clan­des­tinos” da III Re­pú­blica ago­ni­zante».

[2] Journal de guerre (2 de Se­tembro de 1939-20 de Julho de 1940), Paris, Les Édi­teurs fran­çais réunis, 1977, p. 105

[3] Da se­mana pas­sada, a pro­pó­sito de F. Hol­lande.

* No ori­ginal é usada a sigla CAPE, Cer­ti­ficat d'ap­ti­tude au pro­fes­sorat de l'en­seig­ne­ment du se­cond degré, (cer­ti­fi­cado de ap­tidão ao pro­fes­so­rado do en­sino de se­gundo grau). (NR)

** No ori­ginal é usada a sigla APP, Ate­lier de Pé­da­gogie Per­son­na­lisée, (ate­lier de pe­da­gogia per­so­na­li­zada). NR

Texto pu­bli­cado em http://​www.rou­ge­midi.org/​spip.php?ar­ti­cle5237. (1.09.2010)

Tra­dução e sub­tí­tulos da res­pon­sa­bi­li­dade da Re­dacção do Avante!.



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