Porque é que o dirigente desportivo voluntário «não» morre?

A. Mello de Carvalho

Entre nós a con­cepção do des­porto para todos foi cu­ri­o­sa­mente em­po­bre­cida pelo pró­prio sis­tema des­por­tivo. Li­mi­tada às ac­ti­vi­dades de ca­rácter in­di­vi­dual, inor­ga­ni­zadas e in­for­mais, a de­sig­nação en­cerra, em si pró­pria, o de­sejo pro­fundo da prá­tica da cul­tura fí­sica, sob todas as formas, pela grande mai­oria da po­pu­lação. Mas, por outro lado, não deixa de se ca­rac­te­rizar por um con­junto de con­tra­di­ções que li­mitam, de facto, a sua ca­pa­ci­dade de in­te­gração, es­pe­ci­al­mente das ca­madas da po­pu­lação mais des­fa­vo­re­cidas eco­no­mi­ca­mente.

Desta evo­lução, que tem de se con­si­derar es­tru­tu­ral­mente ne­ga­tiva em re­lação ao pen­sa­mento de Cou­bertin quando for­mulou a de­sig­nação no início do sé­culo XX, é o pró­prio mo­vi­mento des­por­tivo o mais di­recto res­pon­sável. Mas o seu a seu dono: de facto, o pen­sa­mento do Barão não era com­pa­tível com as ideias do seu tempo, e esse des­fa­sa­mento agravou-se com o tempo, es­pe­ci­al­mente quando, no úl­timo quartel, o ne­o­li­be­ra­lismo de­sen­freado tomou conta de tudo.

De facto, como des­porto para «todos» quando a po­breza au­menta, não só nos países mais atra­sados, mas também nos mais de­sen­vol­vidos? Mas a ne­ces­si­dade pro­funda está lá, for­mu­lada mais ou menos cons­ci­en­te­mente em toda a po­pu­lação e, por isso, o mer­cado ra­pi­da­mente se apossou da ideia, a fez sua e a ren­ta­bi­lizou em seu pro­veito.

E o Barão, também aqui, é usado como um su­porte bran­que­ador de mais uma tran­qui­bérnia mer­can­ti­lista.

O con­ceito do des­porto po­pular en­contra a sua razão de ser pre­ci­sa­mente neste con­junto de con­tra­di­ções. De­vido ao seu ca­rácter es­pe­cí­fico, no seu centro en­contra-se a noção de di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo. As ra­zões jus­ti­fi­ca­tivas da­quele con­ceito e da in­dis­pen­sável pre­sença destes ele­mentos não são oca­si­o­nais e, ao con­trário do que se passou no pas­sado, não são só de na­tu­reza ide­o­ló­gica.

Qual­quer aná­lise da noção e da pre­sença do di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo, ele­mento nu­clear do des­porto po­pular, tem de ser en­ten­dida no pró­prio in­te­rior do con­junto de de­sa­fios que a so­ci­e­dade ac­tual tem de en­frentar.

Isto quer dizer que as trans­for­ma­ções so­ciais co­lo­caram ao des­porto e ao in­di­víduo novos tipos de pro­blemas, e é para eles que o des­porto po­pular e o di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo pro­curam en­con­trar res­posta. Para aqueles que ac­tuam, de­fendem e se in­te­gram na es­tru­tura do sub-sis­tema do des­porto fe­de­rado, ou que o tomam como mo­delo único e in­tan­gível, esta re­a­li­dade é di­fi­cil­mente com­pre­en­sível. Não se aper­ce­bendo, e não que­rendo tomar em con­si­de­ração, que este sub-sis­tema é so­mente um dos pos­sí­veis, pa­recem aceitar que uma es­pécie de fa­ta­li­dade en­volve o des­porto: a de que, no nosso País, a mai­oria da po­pu­lação está, ne­ces­sa­ri­a­mente, ex­cluída da sua prá­tica. E que ao des­porto in­te­ressa uni­ca­mente o cha­mado «nú­cleo duro» do as­so­ci­a­ti­vismo que tem pos­si­bi­li­dade de res­ponder àquele mo­delo. Todo o «resto» do Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo Des­por­tivo fica assim con­de­nado, numa pri­meira fase, a uma vida cada vez mais di­fícil, para, pos­te­ri­or­mente vir a de­sa­pa­recer.

Mas, para se ser in­tei­ra­mente justo é pre­ciso dizer que esta pers­pec­tiva não emergiu di­rec­ta­mente do cha­mado des­porto fe­de­rado. Ela traduz, no seio do des­porto, a noção comum do­mi­nante no in­te­rior da so­ci­e­dade global. De facto, foi esta que impôs esta con­cepção, na me­dida em que cor­res­ponde ao sen­ti­mento de pro­funda re­jeição de qual­quer noção de acção ma­te­ri­al­mente de­sin­te­res­sada, até porque é opi­nião comum que os «va­lores» de so­li­da­ri­e­dade e co­o­pe­ração não in­te­res­seira já de­sa­pa­reçam e não au­to­rizam que se pense que al­guém ainda os de­fende e, muito menos, os pra­tica dentro da so­ci­e­dade.

Esta visão do pro­blema as­so­ci­a­tivo tem ten­dência a con­si­derar que o di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo que ainda so­bre­vive as­sume o papel de «gestor da po­breza» e cons­titui um su­ce­dâneo da mão-de-obra ba­rata. To­davia, tudo isto não en­contra tra­dução con­creta na re­a­li­dade so­cial: o nú­mero de di­ri­gentes au­menta porque o nú­mero de clubes também cresce sem cessar.

A si­tu­ação ac­tual tende a opor-se à es­tru­tu­ração de uma so­ci­e­dade ver­da­dei­ra­mente viva, par­ti­ci­pa­tiva, não per­mi­tindo ao in­di­víduo se­quer apro­ximar-se dos cen­tros em que se de­cide sobre a sua vida e a re­so­lução dos pro­blemas que são os seus. No en­tanto as ne­ces­si­dades de par­ti­cipar, de se cons­ti­tuir como «actor» dentro da so­ci­e­dade per­duram no in­te­rior da grande massa dos in­di­ví­duos, e são elas que estão na origem e jus­ti­ficam a ma­nu­tenção do di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo (como dos ou­tros «vo­lun­tá­rios so­ciais»).

Todas as aná­lises que hoje se fazem à si­tu­ação so­cial são unâ­nimes em con­si­derar que esta si­tu­ação (anomia) cons­titui um em­po­bre­ci­mento brutal da vida co­mu­ni­tária. As­pecto que é par­ti­cu­lar­mente agra­vado pelas pró­prias con­di­ções da trans­for­mação so­cial em que o tempo de tra­balho as­sume novos as­pectos.



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