Um rasgão no nevoeiro
O Porto Canal é, como a própria designação indica, um canal com preocupações predominante regionais, decerto empenhado em compensar eventuais défices de atenção que penalizem a área do Porto, acessível por cabo e muito provavelmente com escassa audiência no resto do País. Quase se pode dizer sem risco de erro que Porto Canal é, à escala nacional, pouco conhecido, o que obviamente não significa que seja desinteressante, talvez antes pelo contrário. Ora aconteceu que no passado domingo, enquanto os canais tradicionais se aplicavam a informar-nos das desgraças meteorológicas e outras que haviam desabado sobre o mundo inteiro, Porto Canal transmitiu uma entrevista com Ilda Figueiredo, eurodeputada portuense, como é sabido. Acorri a ouvi-la. Não que Ilda Figueiredo não surja frequentemente na televisão: o programa «Eurodeputados», transmitido semanalmente pela RTP2, permite-nos ouvi-la ou a João Ferreira, o outro eurodeputado que o PCP fez eleger para Bruxelas. Mas ouvir então Ilda Figueiredo é um desassossego, uma permanente inquietação: é que a senhora dona jornalista que dirige os debates naquele programa dá sinais de não gostar de ouvir o que a deputada comunista diz, de não suportar o seu tom de voz por muito tempo ou talvez de se incomodar com os argumentos que ouve, pelo que não demora em cortar-lhe a palavra e em entregar o direito de intervenção a outras vozes talvez menos veementes, talvez mais doces, talvez menos distantes dos seus próprios convencimentos. Assim, aproveitei aquela oportunidade para ouvir Ilda Figueiredo na expectativa de a deputada poder ali, no Porto Canal, acabar todas as frases começadas, luxo raro no «Eurodeputados», e de facto não me arrependi.
A caminho do dobro
Não vou registar aqui tudo quanto de interessante Ilda Figueiredo disse ao longo da entrevista, isto é, tudo quanto os telespectadores do Porto Canal com ela ali puderam aprender, pois que dificilmente o aprenderiam nos canais mais frequentados. Não o vou fazer, até porque uma arreliadora interrupção da corrente eléctrica me fez perder uns minutos da sua intervenção, o que pode ter-me privado de ouvir alguma coisa de importante. Mas posso e devo registar, isso sim, o que Ilda Figueiredo ensinou quanto aos níveis de precariedade no emprego aqui, em Portugal, e no resto da Europa comunitária, dado especialmente relevante em face das pressões externas e internas que se exercem sobre o nosso País no sentido de «agilizar» e «flexibilizar» a legislação laboral portuguesa para que o patronato possa despedir sem incómodos. Ilda Figueiredo informou-nos de que a taxa de emprego precário na União Europeia é, em média, cerca de 13%, ao passo que em Portugal é de 22%, isto é, a caminho do dobro da média europeia. Ouvi aquilo e perguntei-me quantos cidadãos portugueses teriam consciência dessa distância impressionante entre a percentagem de trabalhadores portugueses com emprego precário e a mesma percentagem no resto da Europa, de onde aliás provêm muitas vezes as tais pressões para que se acentue entre nós a desgraça que é não ter trabalho certo. E perguntei-me mais, ainda que desde logo acrescentando a óbvia resposta: se não será dever dos canais portugueses de grande audiência informar eficazmente os cidadãos telespectadores destes dois números eloquentes e decisivos. A questão é que esses canais pouco falam da situação real dos trabalhadores portugueses, preferindo pôr a tónica informativa nas maravilhas que a caridade cristã e a esmolinha fazem para minorar os efeitos do desemprego e de outras causas de miséria. A questão é que essa forma de abordar o problema escamoteando o fundamental acaba por constituir uma espécie de neblina que impede a sua visão límpida. Veio Ilda Figueiredo a um canal que sem desdouro podemos reconhecer como menor e em poucas palavras produziu um rasgão nesse nevoeiro. Telespectador que a tenha ouvido pôde, então, a partir daquela amostragem, avaliar um pouco o grau de manipulações a que está submetido em consequência das estratégicas omissões, do enorme relevo dado aos portadores de patranhas, do permanente reproduzir de efectivas ameaças destinadas a enfraquecer as recusas à intensificação de brutalidades sociais que Bruxelas e arredores reclamam. E, tendo aprendido com Ilda Figueiredo, sentir-se com argumentos reforçados para resistir.