1383

Correia da Fonseca

Está ainda em curso na RTP2 uma série de programas intitulada «Grandes Livros» de que já aqui se falou numa débil tentativa de contrariar a quase confidencialidade que tem caracterizado a sua transmissão. Aparentemente, foram tomadas as providências necessárias para que «Grandes Livros» passe despercebida: a série é transmitida pelas 19 horas dos domingos, horário obviamente discreto, e no canal para onde a RTP expede tudo quanto possa vir a perturbar a náusea do seu público por quanto possa contrariar o conforto das ignorâncias em que, com desvelo, a estação pública de televisão prefere mantê-lo. «Grandes Livros» já foi referida nestas colunas numa inevitavelmente débil tentativa para lhe minorar o quase secretismo. O programa consagrado ao «Esteiros», de Soeiro Pereira Gomes, escapou-se-me em consequência de uma informação enganosa prestada pela RTP através da net, mas foi possível aceder aos programas seguintes, sempre para meu reconforto e prazer, mais os dos relativamente poucos que hão-de ter constituído a teleplateia atenta à série. Não apenas as abordagens de livros e autores têm sido perfeitamente correctas, bem equilibradas entre a acessibilidade e o indispensável rigor, como cada programa se tem caracterizado pelo bom gosto no plano visual, como a televisão exige. Testemunhos breves mas eficazes, prestados por figuras competentes do nosso meio cultural, têm vindo a completar a eficácia da equipa liderada pelo realizador João Osório. Pelo que fica dito se compreenderá que uma série assim não podia beneficiar de um posicionamento horário que lhe permitisse amplas audiências, pois a RTP que temos não é criatura para imprudências dessas, e «Grandes Livros», nesta sua segunda série de programas (pois uma primeira série foi transmitida em 2009 também com o mesmo carácter de confidencialidade e com o mesmo efeito de desconhecimento por parte da generalidade dos telespectadores ainda que porventura interessados) vai desaparecer sem que quase se tenha dado por ela.

 

Seis séculos depois

 

No passado domingo, porém, aconteceu com «Grandes Livros» qualquer coisa de curioso e seguramente de não premeditado. O programa foi dedicado a Fernão Lopes e sobretudo à sua «Crónica de D. João I». Ora, como é sabido, esse texto do cronista relata o momento em que o povo de Lisboa se levantou para impedir que o reino fosse parar a mãos em que não tinha confiança, até a mãos estrangeiras, e para impor o rei por ele próprio escolhido. Na prosa de Fernão Lopes, viva e estuante como nunca antes dele houvera, essa afirmação sem precedentes da força de um verdadeiro poder popular registou para a posteridade, como no programa sublinhou António Borges Coelho, uma espécie de refundação de Portugal dessa vez acontecida não em consequência de um dissídio familiar num quadro feudal, como ocorrera entre Afonso Henriques e sua mãe, mas sim como afirmação da vontade de um povo que se achou no direito de determinar o destino do território onde vivia. Ora, sem dúvida que por mera casualidade, este programa foi transmitido no domingo imediatamente anterior ao dia em que o povo português vai ser chamado a escolher a figura que pelo menos no plano formal vai ficar no topo do País. De onde a possibilidade de os acontecimentos relatados por Fernão Lopes poderem ser entendidos como uma lição enviada da distância temporal de seis séculos: a lição de que ao povo assiste o direito de se fazer ouvir e de impor a sua escolha, de que a recusa popular à entrega do País a mãos estrangeiras (ou às de quem se disponha a obedecer a estrangeiros mandos) tem precedentes admiráveis e legitimidades profundas. É, afinal, a opção patriótica e popular, e de esquerda exactamente porque enraizadamente popular, que de novo se proporciona à gente portuguesa. Agora com o exemplo épico das gentes de 1383 e o patrocínio multissecular da prosa admirável de Fernão Lopes.



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