Norberto e a escolha

Correia da Fonseca

En­contro-o pouco, ao Nor­berto, em­bora mo­remos há muitos anos no mesmo prédio. Na ver­dade, apenas nos en­con­tramos em curtas vi­a­gens de ele­vador, e é du­rante esses bre­vís­simos mi­nutos, por vezes um pouco pro­lon­gados no átrio de en­trada, que tro­camos im­pres­sões acerca disto ou da­quilo. O Nor­berto é já um bo­cado para o velho, se­jamos francos, so­bre­tudo agora, quando se é pro­mo­vido a velho mal se afloram os qua­renta anos, mas não é nem pro­mete ser desses, aliás res­pei­tá­veis, a quem a ve­lhice leva a jogar às cartas no jardim pú­blico e pouco mais. Só que a ve­lhice do Nor­berto por vezes sobe à tona do seu dis­curso em função do as­sunto que ele pró­prio impõe nas nossas bre­vís­simas con­versas, e foi assim na manhã de um dia destes a pro­pó­sito do «Prós e Con­tras» onde o tema foi a si­tu­ação do en­sino em Por­tugal e a po­lé­mica quanto aos apoios fi­nan­ceiros es­ta­tais ao en­sino pri­vado. É que o Nor­berto diz-se ateu e pa­rece usar o seu ateísmo na la­pela como se fosse o em­blema do Ben­fica, de tal modo que por vezes a sua ab­so­luta ou re­la­tiva ve­lhice pa­rece re­montar ao tempo em que Pombal ex­pul­sava os je­suítas ou em que o dr. Afonso Costa ar­ra­sava as Or­dens re­li­gi­osas. Em con­sequência, em­bora leve o seu es­pí­rito de­mo­crá­tico ao ponto de ad­mitir, ainda que com al­guma di­fi­cul­dade, que o Es­tado apoie igual­mente co­lé­gios pri­vados e es­colas pú­blicas, e isto apesar de ima­ginar que em grande parte dos pri­vados se mi­nistra a ca­te­quese cristã tanto ou mais do que as equa­ções de pri­meiro grau ou as leis do pên­dulo, fica quase apo­pléc­tico de in­dig­nação ao ouvir rei­vin­dicar que os di­nheiros es­ta­tais, isto é, de todos nós, sejam mais vul­tosos para esses co­lé­gios do que para as es­colas pú­blicas. E foi isso que acon­teceu, ou assim se lhe afi­gurou, du­rante o tal pro­grama, pelo que tive de ouvi-lo não apenas du­rante a vi­agem de ele­vador mas também du­rante al­guns mi­nutos que me pa­re­ceram longos já cá em baixo, à porta da rua.

 

Sus­peitas

Ao que pa­rece, o Nor­berto ouviu ar­gu­mentar du­rante o tal «Prós e Con­tras» que os pais têm o di­reito de es­co­lher para os seus fi­lhos o es­ta­be­le­ci­mento es­colar que me­lhor en­ten­derem. E o Nor­berto dis­corda. Con­cede, e já um pouco com o ar de quem faz um grande favor, que o Es­tado sub­sidie os co­lé­gios pri­vados em áreas onde o en­sino pú­blico do mesmo grau não exista, e ainda assim com conta, peso e me­dida, isto é, não de modo a que os pro­pri­e­tá­rios dos co­lé­gios pri­vados possam, à conta disso, viver à grande e à ame­ri­cana (fór­mula esta que é a versão nor­bé­tica, di­gamos assim, da an­tiga ex­pressão «viver à grande e à fran­cesa» que ele con­si­dera de­sac­tu­a­li­zada), mas não vai além disso. E ar­gu­menta. Diz ele que, por esse andar e pa­ra­le­la­mente, o Es­tado também devia sub­si­diar as clí­nicas e hos­pi­tais pri­vados porque a Saúde não é menos im­por­tante do que a Edu­cação e, assim, os pais também de­viam poder es­co­lher, com o apoio do di­nheiro dos con­tri­buintes, os hos­pi­tais pri­vados onde os cui­dados mé­dicos podem não ser me­lhores do que em hos­pi­tais pú­blicos mas onde são me­lhores as con­di­ções ditas de ho­te­laria e até, even­tu­al­mente, onde as en­fer­meiras são mais bo­nitas, factor que pode não in­te­ressar muito as cri­anças mas pode in­te­ressar muito os papás. Por mim, oiço-o, tomo o pru­dente cui­dado de não o con­tra­riar, mas bem en­tendo que o que mais mo­tiva o Nor­berto é a sus­peita por­ven­tura in­fun­da­men­tada de que em grande parte dos co­lé­gios pri­vados a ver­tente da edu­cação re­li­giosa é muito re­le­vante, mesmo de­ter­mi­nante das es­co­lhas pa­ternas, e ele, Nor­berto, não ad­mite que o seu IRS de ci­dadão laico em Es­tado laico, possa fi­nan­ciar o en­sino do Credo aos seus fi­lhos e netos. Acho que o Nor­berto não crê na co­mu­ni­cação dos santos, na re­missão dos pe­cados, na res­sur­reição da carne e em ou­tros ar­tigos de fé cons­tantes da­quela oração. Até acho que faz mal, mas ele é assim. Mas ele vai mais longe: sus­tenta que pelo menos al­guns desses co­lé­gios são es­co­lhidos por mãe­zi­nhas e pai­zi­nhos por verem neles uma es­pécie de clubes dis­tintos onde as suas cri­anças podem co­meçar a es­ta­be­lecer re­la­ções com gente fina, sem mis­turas com fi­lhos de tra­ba­lha­dores de baixo nível so­cial, de imi­grantes ne­gros ou mesmo de ci­ganos, que horror!, e afirma que não está dis­posto a que o seu di­nheiro sirva para pagar isso. Sus­tenta, pois, com uma ve­e­mência que quase me as­susta, que o Es­tado não pode dar aos pri­vados mais do que às es­colas pú­blicas («e re­pu­bli­canas», su­blinha). Por mim, oiço-o, pa­cí­fico. Mas quando ele enfim se afasta res­piro com alívio.



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