A «morte dos valores»

A. Mello de Carvalho

A di­ver­si­dade de si­tu­a­ções em que se en­con­tram os di­ri­gentes des­por­tivos be­né­volos é enorme. Pa­rece evi­dente que entre o di­ri­gente do pe­queno clube de al­deia, do in­te­rior do País, e do clube de fu­tebol pro­fis­si­onal existe um mundo de di­fe­renças. Mas essa di­fe­ren­ci­ação também se ve­ri­fica em re­lação à origem so­cial dos pra­ti­cantes, às suas di­fe­renças etá­rias e, até, em re­lação às pró­prias mo­da­li­dades des­por­tivas pra­ti­cadas.

O clube de fu­tebol pro­fis­si­onal e mesmo o clube de elite so­cial de di­mensão mais re­du­zida, to­mando como cri­tério o nú­mero de só­cios, não são ob­jecto das pre­o­cu­pa­ções da­quilo que es­tamos a es­crever. In­te­ressa-nos sim o clube com al­gumas cen­tenas ou, por vezes, poucos mi­lhares de só­cios, fun­dado e ac­tu­ando nos meios po­pu­lares. É certo que também entre estes existem di­fe­renças, mas de facto os pro­blemas es­sen­ciais são co­muns e, na ver­dade, cons­ti­tuem a grande mai­oria dos clubes des­por­tivos exis­tentes (dos cerca de 12 500 clubes re­cen­se­ados talvez nem 10% se possam con­si­derar como in­te­grando o grupo dos clubes com ac­ti­vi­dade pro­fis­si­onal – aqui, como em todo o resto, falta in­ves­ti­gação).

Uma das ques­tões que se en­contra neste tipo de aná­lise re­fere-se ao facto cor­rente de se amal­ga­marem num con­junto único os es­cân­dalos dos clubes que se de­dicam ao es­pec­tá­culo des­por­tivo, pro­fis­si­o­na­li­zado, e os pro­blemas reais dos clubes po­pu­lares. Esta si­tu­ação é ex­tre­ma­mente pre­ju­di­cial para estes úl­timos, e é pro­vo­cada, em larga me­dida, pela au­sência de um co­nhe­ci­mento ob­jec­tivo das ca­rac­te­rís­ticas da vida as­so­ci­a­tiva na­ci­onal por um lado, e por outro pelo bai­xís­simo nível de «cul­tura des­por­tiva» exis­tente entre muitos da­queles que tratam destes as­suntos. É entre estes que aquela ide­o­logia en­contra menos re­sis­tência crí­tica em pe­ne­trar e con­di­ci­onar as suas opi­niões e com­por­ta­mentos.

O clube de raiz po­pular, não dis­pondo de meios fi­nan­ceiros e hu­manos, não pode res­ponder às mesmas exi­gên­cias do clube que mo­vi­menta muitas de­zenas ou cen­tenas de mi­lhares de euros! Sendo ge­ridos por vo­lun­tá­rios de­sin­te­res­sados, pouco es­co­la­ri­zados e lu­tando contra um mar de di­fi­cul­dades, estas or­ga­ni­za­ções apre­sentam um ca­rácter con­tra­di­tório que põe em causa as con­cep­ções cons­tan­te­mente so­pradas de todos os lados: ao con­trário do que se diz, não é o di­nheiro que faz mover os di­ri­gentes be­né­volos, estes con­ti­nuam a ori­entar-se por só­lidos prin­cí­pios ético/​so­ciais numa época em que se afirma que os «va­lores» mor­reram e o in­di­vi­du­a­lismo triun­fante tudo do­mina.

Tudo isto, que in­tegra uma cam­panha ide­o­ló­gica com ob­jec­tivos claros, exerce uma in­fluência ne­ga­tiva no mundo do as­so­ci­a­ti­vismo po­pular. Esses ob­jec­tivos são fa­cil­mente com­pre­en­sí­veis: li­quidar a força par­ti­ci­pa­tiva que con­tinua viva nas po­pu­la­ções, de forma a que os di­ri­gentes po­lí­ticos te­nham ainda mais li­ber­dade para ac­tuar sem qual­quer fis­ca­li­zação e con­trole (a não ser no mo­mento da ida às urnas para de­po­sitar o voto), au­mentar os po­ten­ciais cli­entes para as ini­ci­a­tivas pri­vadas, li­bertar os di­nheiros pú­blicos para ou­tras «coisas» que não o apoio ao de­sem­penho das fun­ções so­ciais que cabem ao as­so­ci­a­ti­vismo, que não quer, ou não pode, en­trar no mundo do pro­fis­si­o­na­lismo.

Ainda que a questão cen­tral destas pe­quenas cé­lulas da ac­ti­vi­dade so­cial seja, ge­ne­ra­li­za­da­mente, a da falta de meios fi­nan­ceiros, o di­ri­gente tem, nor­mal­mente, mais ne­ces­si­dade de re­co­nhe­ci­mento da­quilo que faz do que de sub­sí­dios for­ne­cidos mais como forma de «compra» ou de blo­que­a­mento da acção con­tes­ta­tária, do que como pro­cesso de con­tri­buição para o de­sen­vol­vi­mento da de­mo­cracia e da pró­pria so­ci­e­dade.

Evi­den­te­mente que a si­tu­ação seria fa­cil­mente equa­ci­o­nada e en­con­traria res­posta se estes clubes vissem re­co­nhe­cida a sua função es­sen­cial, quer do ponto de vista des­por­tivo, quer so­cial e cul­tural, desde que esse re­co­nhe­ci­mento se tra­du­zisse de forma pal­pável e se o le­gis­lador es­cla­re­cesse essa si­tu­ação em termos claros. Mas não é isso que acon­tece, e convém não criar ilu­sões quanto a uma evo­lução deste tipo quando é a ló­gica da co­mer­ci­a­li­zação e da pro­fis­si­o­na­li­zação que do­mina todo o pro­cesso.

Esta ló­gica não teria, em si mesma, ne­nhuma carga ne­ga­tiva se es­tive co­lo­cada de facto ao ser­viço do in­di­víduo e das res­postas às suas ne­ces­si­dades reais e não cri­adas ar­ti­fi­ci­al­mente pelas modas di­fun­didas pelos grandes meios de co­mu­ni­cação so­cial e que, em grande parte, são lan­çadas pelos grandes in­te­resses eco­nó­micos in­te­res­sados no novo mer­cado. A questão é que este mo­vi­mento, para além de obe­decer a in­te­resses de ob­tenção de lucro mais ele­vado pos­sível, vi­sando «po­pu­la­ções alvo» sempre com ele­vada ca­pa­ci­dade eco­nó­mica e, por­tanto, en­cer­rando em si mesmo uma ca­rac­te­rís­tica se­gre­ga­tiva das prá­ticas, obe­dece também a uma visão ide­o­ló­gica bem de­ter­mi­nada que tudo trans­forma em ob­jecto con­su­mível pouco se im­por­tando com os «va­lores» que devem ori­entar a sua acção (para de­pois vir queixar-se hi­po­cri­ta­mente que os va­lores «mor­reram»).



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