Televisão portuguesa

Correia da Fonseca

 

Do­mingo, a tarde acabou há já algum tempo, re­gressam a suas casas os ainda muitos que pu­deram sair para me­lhor sa­bo­re­arem um dia com sabor a Pri­ma­vera de­pois de se­manas in­ver­nosas. En­tram, des­fazem-se de abafos se os houver, acorrem a ligar o te­le­visor porque, além do mais, a TV «sempre é uma com­pa­nhia», como no tempo pró­prio Ma­nuel da Fon­seca lem­brou em re­lação à Rádio num conto ines­que­cível. Ligam, pois, o te­le­visor, sin­to­nizam talvez a TVI, talvez a SIC, talvez a RTP1, ao en­contro da pri­meira no­tícia da noite. E, qual­quer que tenha sido a es­tação que es­co­lheram, a es­colha terá sido in­di­fe­rente porque a pri­meira no­tícia em qual­quer das três es­ta­ções será a mesma: o cha­mado Caso Rui Pedro. Es­cu­sado seria lembrá-lo, mas o Rui Pedro é um ga­roto que de­sa­pa­receu há treze anos, talvez rap­tado, talvez in­du­zido a uma fuga que terá re­sul­tado da pior ma­neira, não se sabe. Não se soube na al­tura e con­tinua a não se saber, tal como con­tinua a des­co­nhecer-se qual a exacta in­ter­venção no caso de um outro jovem, em­bora não tão jovem quanto o Rui Pedro, já en­ca­rado como o res­pon­sável pelo ocor­rido, isto é, como sus­peito, e que con­tinua agora, treze anos mais tarde, a per­ma­necer na mesma con­dição de sus­peito, ainda que de um modo mais for­ma­li­zado. Quer isto dizer que, de facto, não há agora, treze anos de­pois do su­ce­dido, ne­nhum avanço con­creto acerca do que acon­teceu ao Rui Pedro, de como lhe acon­teceu, das causas e con­sequên­cias pro­va­vel­mente trá­gicas do de­sa­pa­re­ci­mento. Nada de subs­tan­cial, enfim. Não obs­tante, o Caso Rui Pedro abriu no do­mingo os no­ti­ciá­rios prin­ci­pais da RTP1, da SIC e da TVI. Porque terá sido? Há mo­ti­va­ções pos­sí­veis, plau­sí­veis e pro­vá­veis. Porque o caso cheira a crime, porque é sem dú­vida um drama ter­rível para a fa­mília do Rui Pedro desde há treze anos, porque até anda por lá um odor a sexo na me­dida em que o Rui terá sido le­vado a uma pros­ti­tuta antes de de­sa­pa­recer. E a te­le­visão por­tu­guesa é assim: gosta de for­necer aos ci­da­dãos te­les­pec­ta­dores as­suntos que te­nham crime, drama, sexo. Estes são três in­gre­di­entes bá­sicos entre os que usa para fa­bricar a dieta te­le­vi­siva com que, tanto quanto lhe é pos­sível, ali­menta a cu­ri­o­si­dade do seu pú­blico, ori­enta as suas ape­tên­cias, pro­cura fixar ou am­pliar as au­di­ên­cias que in­di­rec­ta­mente lhe per­mitem em­bolsar di­nheiros por via pu­bli­ci­tária.

 

Talvez não

 

Temos, pois, que os três ca­nais que con­subs­tan­ciam o que é, de longe, o mais im­por­tante da te­le­visão por­tu­guesa em termos de im­pacto, abriram os seus no­ti­ciá­rios prin­ci­pais, no pas­sado do­mingo, abor­dando o mesmo as­sunto, e nele qual­quer das três se de­morou du­rante largo tempo. Dele não ti­nham nada de ver­da­dei­ra­mente re­le­vante para co­mu­nicar ao País, in­fe­liz­mente, ex­cepto talvez a im­po­tência das in­ves­ti­ga­ções para es­cla­recer o caso. Por outro lado, nem a cri­a­tura mais in­te­lec­tu­al­mente mais míope e menos in­for­mada pode acre­ditar que na­quele dia não teria ha­vido no País e no mundo nada de mais im­por­tante. Porém, a con­ver­gência talvez apa­ren­te­mente es­pan­tosa, talvez não, das es­co­lhas de cada uma das três es­ta­ções teve uma vir­tude, ainda que in­vo­lun­tária: con­firmou aos que olham a te­le­visão por­tu­guesa com olhos de ver e a ouvem com ore­lhas de ouvir, isto é, aos que a acom­pa­nham com ca­beça de en­tender, que a te­le­visão por­tu­guesa en­quanto cons­ti­tuída por aquelas três ope­ra­doras dis­tintas mas um só perfil ver­da­deiro tem uma comum es­cala de pri­o­ri­dades que de­sem­boca num pre­su­mível ob­jec­tivo comum: res­guardar os ci­da­dãos do que é im­por­tante, não vá ele dar-se ao in­có­modo de pensar; mantê-lo fas­ci­nado pelo que é com­ple­mentar ou se­cun­dário mas lhe é ser­vido em molho que o torne ape­ti­toso. Con­tudo, não seria talvez este o des­tino na­tural, di­gamos assim, do ins­tru­mento que a TV é ou pode ser. Não terá sido para este tra­balho su­bal­terno e um pouco reles de anes­tesia que a TV foi in­ven­tada ou que em tempos os ci­da­dãos a so­nharam. Por vezes, na ten­ta­tiva de jus­ti­ficar o ca­minho es­co­lhido, os que de longe ou de mais perto mandam na te­le­visão que con­su­mimos usam o ar­gu­mento de que a TV não é uma be­ne­me­rência, mas sim um ne­gócio. Ainda assim, porém, não serão con­vin­centes pe­rante quem lhes exa­mine o ar­gu­mento. Ou sê-lo-ão num sen­tido di­verso do pre­ten­dido. Porque pa­recem sus­tentar-se no en­ten­di­mento de que um ne­gócio tem de ser por força porco, feio e mau, que é im­pen­sável haver ne­gó­cios em que a ma­téria-prima seja limpa e útil. E, em ver­dade, talvez não seja bem assim.



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