A intervenção do «carola» – seu significado

A. Melo de Carvalho

O di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo a que cha­mamos, em termos tra­di­ci­o­nais, de «ca­rola», situa-se, na sua pro­ble­má­tica ac­tual, no in­te­rior da di­nâ­mica es­ta­be­le­cida entre a mo­ne­ta­ri­zação das re­la­ções so­ciais e o de­sen­vol­vi­mento das ac­ti­vi­dades que não as­sumem qual­quer ca­rácter mer­cantil mas que pos­suem um valor fun­da­mental re­fe­rido à co­mu­ni­dade no seu todo.

O «ca­rola» não pode ser com­pre­en­dido em toda a sua ex­tensão no ex­te­rior desta pro­ble­má­tica. Aliás, a pró­pria crise do as­so­ci­a­ti­vismo só surge com a in­dis­pen­sável cla­reza no in­te­rior da opo­sição que se es­ta­be­lece, na so­ci­e­dade ac­tual, entre aquelas duas pers­pec­tivas. Pre­do­mi­nando, como pre­do­mina a pri­meira delas, é na­tural que, quer este, quer aquele, vivam di­fi­cul­dades co­nhe­cidas. A questão não se co­loca, por isso, so­mente no maior ou menor apoio que os go­vernos for­necem, mas situa-se num ponto ful­cral do pró­prio «fun­ci­o­na­mento» da so­ci­e­dade que estes im­põem e da crise que pro­vocam. Na ver­dade, não é mais do que um dos as­pectos da «crise» global em que a so­ci­e­dade ne­o­li­beral se en­contra mer­gu­lhada.

A função es­sen­cial do di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo, ou seja do «ca­rola», é se­me­lhante àquela que ca­rac­te­riza todos os ou­tros vo­lun­tá­rios be­né­volos. Con­siste em ex­pressar a sua ca­pa­ci­dade em in­vestir o tempo «li­ber­tado» em be­ne­fício da co­mu­ni­dade, na pers­pec­tiva de uma uti­li­zação mais ren­dível da ri­queza so­cial co­lec­tiva, quer através da cri­ação das es­tru­turas re­la­ci­o­nais adap­tadas ao pre­sente, quer pro­cu­rando de­tectar os ser­viços em que elas me­lhor se ex­primem. É este con­junto que irá de­ter­minar a evo­lução do clube fu­turo, como acon­te­cerá com as ou­tras es­tru­turas as­so­ci­a­tivas que ex­primem so­li­da­ri­e­dades e in­tervêm em lutas, mais ou menos abertas, in­tensas e claras, para fa­zerem frente aquele em­po­bre­ci­mento geral que traduz, de facto, a exis­tência de um sen­ti­mento de re­volta e ina­cei­tação do es­tado de coisas ac­tual. E isto, in­de­pen­den­te­mente da visão ide­o­ló­gica dos «ac­tores» e das suas mo­ti­va­ções po­lí­ticas.

A in­ter­venção do «ca­rola» as­sume, por isso, três as­pectos dis­tintos mas ab­so­lu­ta­mente in­te­grados: por um lado ela re­fere-se ao campo so­cial em que as novas con­di­ções de vida so­cial cri­adas pela ur­ba­ni­zação con­cen­tra­ci­o­nária, a de­ser­ti­fi­cação dos campos, o au­mento do de­sem­prego e por ou­tros fe­nó­menos igual­mente im­por­tantes e graves, impõe a es­tru­tu­ração de novos tipos de res­posta em re­lação ao pas­sado. O que quer dizer que, talvez mais do que nunca, a sua pre­sença se torne in­dis­pen­sável. Por outro lado, este tipo de in­ter­venção pro­voca um no­tável en­ri­que­ci­mento pes­soal, uma au­tên­tica «mais valia hu­mana», como re­ferem certos au­tores.

Fi­nal­mente, mesmo no campo eco­nó­mico, as­pecto nor­mal­mente pouco con­si­de­rado, a sua in­ter­venção as­sume um peso ine­gável. É certo que este as­pecto, em termos quan­ti­ta­tivos é ainda muito di­fícil de de­ter­minar. A ava­li­ação de ac­ções que não criam mais va­lias fi­nan­ceiras é ainda im­pos­sível entre nós (ainda que seja pos­sível fazer um exer­cício arit­mé­tico sim­ples que con­sis­tiria em mul­ti­plicar o nú­mero es­ti­mado de di­ri­gentes pelo nú­mero de horas «mé­dias» por eles for­ne­cidas; em se­guida bas­taria atri­buir um valor a cada hora e te­ríamos um quan­ti­ta­tivo final que, se­gundo al­guns, ul­tra­pas­saria vá­rias de­zenas de mi­lhões de euros anuais).

Mas não é esta úl­tima pers­pec­tiva que nos in­te­ressa. É in­dis­cu­tível que ser­viços, ac­ti­vi­dades, bens, em­pregos, etc., são ge­rados pela ac­ti­vi­dade das muitas de­zenas de mi­lhar de di­ri­gentes des­por­tivos be­né­volos. Por­tanto, apesar de nos en­con­trarmos num sector não mer­cantil, existem im­por­tantes fluxos fi­nan­ceiros em jogo. Por outro lado, um valor fi­nan­ceiro muito sig­ni­fi­ca­tivo é, também, ge­rado pelas re­per­cus­sões das prá­ticas dos clubes por eles postos e man­tidos a fun­ci­onar, em termos de pre­venção da saúde, in­te­gração so­cial, so­ci­a­bi­li­zação e for­mação da ju­ven­tude, etc.

A função do di­ri­gente des­por­tivo be­né­volo e suas con­sequên­cias, quer para o des­porto, mas, so­bre­tudo, para a pró­pria so­ci­e­dade ficam, assim, de­fi­nidas de uma forma clara. Resta à so­ci­e­dade re­co­nhecê-las em toda a sua di­mensão.

Ora, este re­co­nhe­ci­mento tem muito que se lhe diga. Antes de tudo ele impõe-se pela sim­ples razão de que quanto mais fa­ci­li­tada for a sua acção mais pro­du­tivo (na­quele triplo sen­tido) se torna. Isto sig­ni­fica que, mesmo ao pró­prio Es­tado ca­pi­ta­lista de ma­triz ne­o­li­beral, é do maior in­te­resse re­co­nhecer, pelo menos, a úl­tima da­quelas fun­ções. Sim­ples­mente ele bem sabe que ao fazê-lo es­tará a con­tri­buir para a emer­gência das ou­tras duas, coisa que não pode to­lerar. Daí a falta de re­co­nhe­ci­mento, a di­fusão per­ma­nente de que o vo­lun­tário be­né­volo está «mo­ri­bundo» e a cri­ação de obs­tá­culos ao de­sen­vol­vi­mento da sua acção.



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