Incerteza

Correia da Fonseca

Re­ca­pi­tulo o que a te­le­visão me fez saber ao longo da se­mana pas­sada e en­contro três as­suntos que me pa­recem ter sido os que do­mi­naram os seus ser­viços no­ti­ci­osos: as elei­ções no Spor­ting, o mo­mento po­lí­tico na­ci­onal e a guerra da Líbia. Por esta ordem, não quanto à sua real im­por­tância mas sim quanto aos tempos de emissão que lhes foram con­sa­grados. Será claro, de­certo, que quanto às elei­ções no Spor­ting não vou atrever-me a opinar aqui em favor deste ou da­quele nem sobre o modo como cada qual con­duziu a sua cam­panha elei­toral, para o que aliás não teria a mí­nima com­pe­tência e nem mesmo o mí­nimo co­nhe­ci­mento. Apenas me sinto no dever de re­gistar a ver­da­deira ver­gonha dos con­frontos entre fac­ções de só­cios do mesmo clube, tes­te­mu­nhadas pelas ima­gens que a TV nos for­neceu. Pe­rante a já an­tiga guerra de pa­la­vras e não só, também de ar­re­messo de pe­dre­gu­lhos, bolas de golfe e ou­tros pro­jéc­teis, ha­vida entre o Fu­tebol Clube do Porto e o Ben­fica, terá ha­vido in­gé­nuos a acre­ditar que no Spor­ting era outro e me­lhor o grau ci­vi­li­za­ci­onal, até porque o clube tem fama de ser agre­mi­ação de gente fina; vai-se a ver e foi aquela lás­tima de­nun­ci­a­dora do efeito per­ni­cioso que o fu­tebol, no seu es­tado ac­tual, tem sobre as ca­beças dos adeptos. Mas pas­semos e ocu­pemo-nos su­ma­ri­a­mente do modo como a te­le­visão tem feito a co­ber­tura da crise po­lí­tica em curso. Pen­sando bem, re­gres­samos um pouco aos mé­todos, di­gamos assim, que pautam a abor­dagem pela TV, e não só, do fu­te­bo­lismo lu­si­tano: como regra geral, só há an­tena para o PSD, o PS e o CDS-PP, tal como nos fu­te­bóis só pa­recem in­te­ressar o Ben­fica, o Porto e o Spor­ting. Com a di­fe­rença de que neste caso o mo­tivo da res­trição in­for­ma­tiva não re­sulta da caça às au­di­ên­cias mas sim de uma es­tra­tégia de as­sas­sínio po­lí­tico pela omissão di­ri­gida contra o PCP. Bem se sabe que o facto não cons­titui no­vi­dade, mas em tempo pré-elei­toral as­sume gra­vi­dade maior e, de qual­quer modo, contra ela se jus­ti­fica a in­dig­nação e o pro­testo.

 

Uma es­treia mun­dial

 

Re­fi­ramo-nos, porém, ao que é ver­da­dei­ra­mente im­por­tante e ocupou tempo re­la­ti­va­mente ex­tenso nos ser­viços no­ti­ci­osos da te­le­visão: a guerra na Líbia. Aqui, con­tudo, de­pa­ramos com meios si­lên­cios, omis­sões e mesmo be­li­ge­rân­cias in­for­ma­tivas que co­lidem es­can­da­lo­sa­mente com os de­veres de ob­jec­ti­vi­dade que im­pendem sobre a co­mu­ni­cação so­cial. É certo que as três es­ta­ções por­tu­guesas en­vi­aram jor­na­listas à Líbia em re­gime de en­vi­ados es­pe­ciais, mas não acon­teceu que dessa me­dida tenha re­sul­tado um maior e me­lhor co­nhe­ci­mento das raízes do con­flito e da forma como ele veio de­cor­rendo.

Fun­da­mental é que a TV nunca deu o re­levo ade­quado a um facto in­tei­ra­mente novo no quadro da po­lí­tica in­ter­na­ci­onal: nunca a ONU, or­ga­nismo criado há bem mais de meio sé­culo com o ob­jec­tivo cen­tral de evitar as guerras e de pro­mover as so­lu­ções pa­cí­ficas de di­ver­gên­cias e ani­mo­si­dades entre es­tados, se dis­pu­sera a fazer uma ver­da­deira de­cla­ração de guerra a um Es­tado membro; mesmo nos Balcãs ou no Iraque não ti­vera essa au­dácia, pelo que o caso da Líbia surgiu como uma ab­so­luta es­treia mun­dial. Ali­nhando sem es­crú­pulo vi­sível pelo be­li­cismo que animou o ma­gote de po­tên­cias mi­li­tares que com maior ou menor in­ten­si­dade se atirou sobre a Líbia, a te­le­visão quase não no­ti­ciou a oferta de me­di­ação do con­flito que logo nos pri­meiros dias foi feita pela Ve­ne­zuela e ou­tros países da Amé­rica do Sul, prá­tica de quase total cen­sura e de óbvia gra­vi­dade. Também nunca fomos in­for­mados pela TV de onde pro­veio o ar­ma­mento uti­li­zado pelos re­beldes, pelo que fi­quei in­cli­nado a crer que todas aquelas armas foram for­ne­cidas via fa­ce­book. Quanto aos avanços e re­cuos de ambas as fac­ções em luta, a in­for­mação da TV foi de uma no­tória con­fusão. E é claro que de tudo isto, que não é tudo, re­sultou para o te­les­pec­tador não in­tei­ra­mente pas­sivo num ele­vado grau de in­cer­teza, e a pa­lavra ainda é ge­ne­rosa, quanto às in­for­ma­ções que lhe eram for­ne­cidas. É certo que esse tipo de in­cer­teza de­corre per­ma­nen­te­mente, ainda que em di­fe­rentes graus, de quase tudo quanto a TV por­tu­guesa nos conta. Mas é claro que a di­mensão da bru­ta­li­dade de­sen­ca­deada sobre a Líbia e as suas con­sequên­cias ime­di­atas sobre o povo líbio agravam o es­cân­dalo de uma in­for­mação se­lec­ci­o­nada e ma­ni­pu­lada. O que aqui se re­gista, como cumpre a esta dupla co­luna.



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