A ausente

Correia da Fonseca

Li­gara o te­le­visor poucos mi­nutos antes quando ele apa­receu. Do lado de lá do ecrã, pa­receu fitar-me olhos nos olhos, cara a cara, e sen­ten­ciou: «-É pre­ciso dizer a ver­dade aos por­tu­gueses!». Con­cordei, é claro, quem sou eu para dis­cordar de tão evi­dente ne­ces­si­dade?, mas de mim para mim pensei que ali es­tava mais um. Mais um dos muitos que in­siste na ne­ces­si­dade de que se diga a ver­dade, sinal de que a co­nhece bem, à ver­dade, pois de outro modo não po­deria dar pela sua falta e es­taria ma­duro para acre­ditar em qual­quer im­pos­tura que lhe im­pin­gissem. Mais um, porém, que em­bora co­nhe­cendo a ver­dade não con­des­cende em no-la re­velar, li­mi­tando-se a re­clamar que ou­tros a digam. É claro que este apego pela ver­dade é sim­pá­tico. E vem de longe: vem dos tempos em que a drª. Ma­nuela, essa ines­que­cível se­nhora, andou a pe­nhorar cré­ditos in­co­brá­veis no balcão de um banco ame­ri­cano para que o dé­fice fi­casse mais apre­sen­tável mesmo que já então fosse um dé­fice men­ti­roso. Mas sendo a ver­dade um bem tão es­ti­mável e es­ti­mado, sendo co­nhe­cida pelos que exac­ta­mente por co­nhecê-la sabem muito bem que con­tinua oculta, por que será que não a par­ti­lham fra­ter­nal­mente con­nosco, ci­da­dãos te­les­pec­ta­dores de­sin­for­mados e en­re­dados numa teia de acu­sa­ções re­cí­procas que não acres­centam nada de jeito ao que já muito bem sa­bemos. Para nosso mal, de resto. Porque a nossa sa­be­doria quase se con­densa na cer­teza de que te­remos de ser quase todos nós a pagar para que uns poucos não se sintam in­co­mo­dados ao verem di­mi­nuídos os ren­di­mentos a que estão ha­bi­tu­ados.

 

A troca em­bus­teira

Esta nossa sa­bença, sim­ples e sin­té­tica, é bem capaz de ser o mais im­por­tante, mas convém dizer que não foi apren­dida di­ante dos te­le­vi­sores, por muitos e ex­ce­lentes que sejam os ca­va­lheiros que acorrem aos es­tú­dios das es­ta­ções de TV, dir-se-ia que aco­to­ve­lando-se para neles con­se­guirem lugar e de lá nos in­for­marem de que os ou­tros, os do outro bando da mesma margem di­reita, são pés­simos, en­quanto os do seu bando é que são bons. Não, a nossa apren­di­zagem é feita nou­tros lados, no con­tacto per­ma­nente com a vul­ga­ri­dade quo­ti­diana com que con­vi­vemos no em­prego se ainda o ti­vermos, no posto mé­dico se a saúde fra­quejou, no su­per­mer­cado se por lá ti­vemos de passar. Mas é de supor que não é a essa sa­be­doria ele­mentar e di­recta que aludem os que tão fre­quen­te­mente e com ta­manha con­vicção pedem que os ou­tros, não eles, digam «a ver­dade aos por­tu­gueses».

Fica a gente a per­guntar-se qual será ela, a ver­dade cuja pre­sença é tão pe­dida e que, pelos vistos, per­ma­nece au­sente. Até que a pouco e pouco, como que gota a gota, vamos per­ce­bendo que a ver­dade deles, dos que vêm à TV exigir que ela seja co­nhe­cida por boca alheia, é muito di­fe­rente da que vamos des­co­brindo ou con­fir­mando pela cada vez mais di­fícil res­pi­ração da vida con­creta de uma po­pu­lação in­teira, salvo um pu­nhado de ex­cep­ções. A ver­dade su­ben­ten­dida nas arengas dos dis­tintos es­pe­ci­a­listas que têm acesso aos es­tú­dios é a de que o País está ar­rui­nado porque tem an­dado a gastar de mais com os do­entes, os que per­deram o em­prego, os que não têm eira nem beira, os que teimam em pôr os fi­lhos a es­tudar, com gente assim. O que nós, ar­raia-miúda, vamos sa­bendo é que o povo está ar­rui­nado porque em­presas grandes e mé­dias o lan­çaram no de­sem­prego par­tindo ou não para longes terras, porque a dis­tri­buição do ren­di­mento na­ci­onal entre o ca­pital e o tra­balho ga­lopou a favor do pri­meiro ao longo de poucos anos, porque os de­ten­tores do di­nheiro se re­cusam a in­vestir em ac­ti­vi­dades pro­du­tivas e pre­ferem aplicá-lo em ope­ra­ções fi­nan­ceiras que não geram postos de tra­balho mas en­gordam contas off-shore. E, se qui­sermos e pu­dermos es­gra­vatar um pouco mais em busca das causas, des­co­bri­remos que es­tamos em di­fi­cul­dades porque acei­támos abrir as nossas fron­teiras co­mer­ciais a todo o tipo de im­por­ta­ções, ainda que inú­teis ou afron­to­sa­mente caras, em troca do que nos dis­seram ser «a so­li­da­ri­e­dade da Eu­ropa», e agora todos os dias vamos sa­bendo que a tal so­li­da­ri­e­dade está di­fícil e cobra juros a oito por cento. Pe­rante isto, que de­certo está longe de ser tudo, ca­berá per­guntar se esta é que é a tal ver­dade au­sente que é tão re­cla­mada por quem pode ir à TV dis­parar frases contra o outro bando da mesma margem. E a ex­pe­ri­ência que destas coisas já ad­qui­rimos res­ponde-nos que não.



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