Karl Marx e Friedrich Engels a A. Bebel, W. Liebknecht, W. Bracke e outros

(«Carta circular») (Conclusão)

O manifesto dos três de Zurique

 

Têm vocês aqui o programa dos três censores de Zurique. Em clareza, nada deixa a desejar. Pelo menos, para nós, que ainda conhecemos bem estas maneiras de falar todas, desde 1848 para cá. São os representantes da pequena burguesia [Kleinbürgertum] que se anunciam, cheios de medo de que o proletariado, compelido pela sua situação revolucionária, possa «ir demasiado longe». Em vez de oposição política decidida – mediação [Vermittlung] geral; em vez de luta contra o governo e a burguesia – a tentativa de os ganhar e de os persuadir; em vez de resistência obstinada contra os maus tratos de cima – submissão humilde e admissão de que se tinha merecido o castigo. Todos os conflitos historicamente necessários são interpretados deturpadamente como mal-entendidos, e toda a discussão termina com o protesto: no principal, estamos afinal todos unidos. As pessoas que em 1848 apareceram como democratas burguesas, podem agora do mesmo modo chamar-se a si próprias sociais-democratas. Tal como, para aquelas, a república democrática, também, para estas, o derrube da ordem capitalista fica na lonjura inalcançável [e] não tem, portanto, absolutamente nenhuma significação para a prática política do presente; pode-se mediar, fazer compromissos, praticar a filantropia, quanto se quiser. É o mesmo quanto à luta de classes entre proletariado e burguesia. É reconhecida no papel, porque já não se pode negá-la; na prática, porém, é mascarada, apagada, amortecida. O Partido Social-Democrata não deve ser nenhum Partido operário, não deve atrair sobre si o ódio da burguesia ou, em geral, de quem quer que seja; deve, antes de tudo, fazer uma propaganda enérgica entre a burguesia; em vez de dar peso a objectivos [Ziele] que vão longe, que assustam a burguesia e que, contudo, são inalcançáveis na nossa geração, ele deve antes empregar toda a sua força e energia naquelas reformas remendonas pequeno-burguesas que conferem à velha ordem da sociedade novos apoios e que, por esse facto, poderiam talvez transformar a catástrofe final num processo gradual, parcelar e o mais possível pacífico de dissolução. São as mesmas pessoas que, sob a aparência da incansável ocupação, não só não fazem nada elas próprias, como também tentam impedir que, em geral, aconteça algo – a não ser conversa; as mesmas pessoas, cujo medo de qualquer acção, em 1848 e em 1849, entravou o movimento a cada passo e finalmente o levou à derrota; as mesmas pessoas que nunca vêem a reacção e, depois, ficam totalmente admiradas de se encontrarem finalmente num beco sem saída, onde nem resistência nem fuga são possíveis; as mesmas pessoas que querem confinar a história ao seu horizonte pequeno-burguês [Spiessbürgerhorizont] e por cima das quais, de cada vez, a história transita para a ordem do dia.

No que se refere ao seu teor socialista, este já foi suficientemente criticado no Manifesto, no capítulo: «O socialismo alemão ou «verdadeiro.» (12) Onde a luta de classes é empurrada para o lado como desagradável fenómeno «grosseiro», não fica para base do socialismo senão o «verdadeiro amor pela humanidade» e maneiras de falar vazias acerca da «justiça».

É um fenómeno inevitável, fundado no curso do desenvolvimento, que pessoas das classes até aqui dominantes se juntem ao proletariado que luta, e lhe tragam elementos de cultura. Já falámos disso claramente no Manifesto (13). Aqui há, porém, duas coisas a observar:

Primeiro, essas pessoas, para serem úteis ao movimento proletário, têm que trazer consigo elementos de cultura reais. Isto não é, porém, o caso para a grande maioria dos convertidos burgueses alemães. Nem o Zukunft nem a Neue Gesellschaft (14) trouxeram o que quer que fosse que fizesse o movimento avançar um passo. Há lá uma falta absoluta de material de cultura [Bildungsstoff] real, efectivo ou teórico. Em vez disso, há tentativas para pôr o pensamento socialista, superficialmente apropriado, em consonância com os pontos de vista teóricos mais diversos que os senhores trouxeram consigo da Universidade, ou de qualquer outro sítio, e em que um é ainda mais confuso do que o outro, graças ao processo de putrefacção em que os restos da filosofia alemã se encontram hoje. Em vez de, para começar, estudarem eles próprios fundamentadamente a nova ciência, cada um prefere afeiçoá-la ao ponto de vista que trouxe consigo, fazer dela sem hesitar uma ciência privada própria, e aparece mesmo com a pretensão de a querer ensinar. Por isso, entre estes senhores há aproximadamente tantos pontos de vista quantas as cabeças; em vez de trazer clareza seja ao que for, apenas estabeleceram uma grave confusão – felizmente, quase só entre eles próprios. [Quanto a] semelhantes elementos de cultura, cujo primeiro princípio é ensinar o que ainda não aprenderam, pode o Partido passar bem sem eles.

Em segundo lugar. Se essas pessoas de outras classes se juntam ao movimento proletário, a primeira exigência é a de que elas não tragam consigo nenhuns restos de pré-juízos burgueses, pequeno-burgueses, etc., mas se apropriem com franqueza da maneira de ver [Anschauungsweise] proletária. Aqueles senhores, porém, como ficou provado, estão completamente cheios de representações burguesas e pequeno-burguesas. Num país tão pequeno-burguês como a Alemanha, estas representações têm seguramente a sua justificação. Mas apenas fora do Partido Operário Social-Democrata. Se os senhores se constituírem em Partido pequeno-burguês social-democrata, estão no seu pleno direito; poder-se-á, então, negociar com eles, mesmo, segundo as circunstâncias, formar cartéis, etc. Mas, num Partido operário, eles são elementos adulteradores. Se, de momento, há razões para os tolerar, subsiste a obrigação de apenas os tolerar, de não lhes permitir nenhuma influência sobre a direcção do Partido, de permanecer conscientes de que a rotura com eles é só uma questão de tempo. De resto, esse tempo parece ter chegado. Parece-nos inconcebível como o Partido pode tolerar no seu seio durante mais tempo os autores deste artigo. Se, porém, a direcção do Partido vier mesmo a cair mais ou menos nas mãos de semelhantes pessoas, o Partido fica simplesmente castrado e pôr-se-ia fim ao arrojo proletário.

No que nos diz respeito, com todo o nosso passado, só nos fica um caminho aberto. Desde há quase 40 anos que pusemos em evidência a luta de classes como poder motor próximo da história e, especialmente, a luta de classes entre burguesia e proletariado como a grande alavanca do revolucionamento social moderno: é impossível, portanto, acompanharmos com pessoas que querem riscar esta luta de classes do movimento. Aquando da fundação da Internacional, formulámos expressamente o grito de guerra: a libertação da classe operária tem que ser obra da própria classe operária (15). Não podemos, portanto, acompanhar com pessoas que abertamente afirmam que os operários são demasiado incultos para se libertarem a si próprios, e que só a partir de cima têm que ser libertados, por grandes e pequenos burgueses filantrópicos. Se o novo órgão do Partido tomar uma atitude que corresponde às opiniões daqueles senhores, for burguês e não proletário, não nos resta senão, por muita pena que isso nos faça, declarar-nos abertamente contra, e romper a solidariedade com que, até aqui, face ao estrangeiro, temos representado o Partido alemão. Esperemos, contudo, que não se chegue até aí. [...]

 

Escrito por Marx e Engels em 17 e 18 de Setembro de 1879. Publicado pela primeira vez na revista Die Kommunistische Internationale, XII Jahrg., Heft 23, 15 de Junho de 1931. Publicado segundo o texto do manuscrito. Traduzido do alemão.

___________

 Notas

(12) Ver Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, pp. 62-65.

(13) Ver id., ibid., p. 46.

(14) Die Zukunft (O Futuro): revista de orientação social-reformista, publicada de Outubro de 1877 a Novembro de 1878 em Berlim. Era editada por K. Höchberg. Marx e Engels criticavam acerbamente a revista pelas suas tentativas de conduzir o partido para uma via reformista.

Die Neue Gesellschaft (A Nova Sociedade) revista social-reformista publicada em Zurique em 1877-1880.

(15) Cf. K. Marx, Provisional Rules of the International Working Men’s Association [Estatutos Provisórios da Associação Internacional dos Trabalhadores], in Collected Works, International Publishers, New York, 1985, vol. 20, p. 14.


Selecção: Francisco Melo
Traduç
ão: José Barata-Moura



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