São já não sei quantos mil

Correia da Fonseca

Sem surpresas, o noticiário abriu como é costume, isto é, aparentemente baseado nas manchetes dos jornais do dia: era o ciclone Irene que ameaçara Nova Iorque e se reduzira para a intensidade ainda assim temível de tempestade tropical, era a derrota do Sporting em Alvalade, era a ainda não concluída vitória da NATO e dos rebeldes líbios sobre o ainda não localizado coronel Kadhafi. Lá mais para diante, veio a saber-se que a Irene havia provocado dezoito mortos, o que é muito para tempestade com tão doce nome mas não é nada em confronto com o que sucede no Iraque em cada dia que passa. Do Sporting, percebeu-se que a situação se tornara inquietante e que aquele rapaz que veio do Norte pode estar perante o risco de falhar o prosseguimento de uma carreira que parecia muito bem encaminhada. Quanto à Líbia, não ouvi que fosse repetida a informação que a TV me dera na véspera, ou talvez na antevéspera: que, graças à sua democrática intervenção aérea, a França já assegurou o acesso a trinta por cento do petróleo líbio, e também que a Itália, muito menos interveniente na campanha mas exibindo os seus pergaminhos de antiga potência colonial, reivindica uma fatia não muito menor. Após estas notícias que pela sua colocação na sequência informativa pareciam pertencer a uma espécie de aristocracia noticiosa seguiram-se outras, naturalmente: a de que um quarteirão de municípios (entre cerca de três centenas, dado não referido) estão com graves dificuldades financeiras, a de que o PSD vai ter a sua rentrée política em Castelo de Vide, a de que o CDS-PP vai ter novo secretário-geral, coisas assim.

 

Quando a desgraça alastra

 

Foi só depois destas e de outras notícias que veio a informação de que já são cerca de duzentos e quarenta mil os trabalhadores portugueses que não recebem subsídio de desemprego, ou porque se tenha esgotado o período a que a ele tinham direito ou porque nunca chegaram a preencher as condições que lhes permitiriam recebê-lo. Foram ainda aludidos outros motivos para a perda desse apoio que aliás bem sabemos magro e muito regateado, mas a jornalista que apresentava o noticiário não foi muito clara quanto a esse ponto ou talvez eu não lhe tenha estado suficientemente atento, hipótese mais provável. É que eu ficara um poucochinho aturdido com o número divulgado, não apenas porque duzentos e quarenta mil já é número elevado para o universo laboral português mas também, e talvez sobretudo, por bem se saber que nestas questões de desemprego, como aliás noutras, os números oficiais avançados sempre se situam bem aquém da realidade. Acresce que, como também é sabido, um desempregado não está só na sua angústia, e a desgraça que o atinge alastra aos seus familiares, isto quer receba ou não subsídio de desemprego mas naturalmente com muito maior intensidade se até isso lhe faltar. Assim, feitas muito sumariamente as contas, depressa se percebe que o número de atingidos pela terrível situação de desemprego sem subsídio excede seguramente o anunciado e, por mim, nem me atrevo a esboçar uma estimativa: são já não sei quantos mil, e é consensual que o número tende a aumentar vertiginosamente. E quem se dedique a ouvir doutos pareceres que abundam na TV decerto ouvirá, por estas ou equivalentes palavras, que ninguém pode ser responsabilizado pela calamidade que resulta, isso sim, das leis do mercado perante as quais nada há a fazer senão acatá-las

 

O seguro impossível

 

Há quem se aperceba de que duzentos e quarenta mil desempregados sem subsídio, mais uns muitos mil que ainda o têm embora por pouco tempo, mais os milhares não contabilizados pelos serviços oficiais e os outros muitos milhares que já estão como que prometidos, consubstanciam uma realidade que tende naturalmente a ter consequências. Mas há também quem dê sinais de não o entender. Entre os primeiros estarão os poucos portugueses que, podendo integrar com justiça a categoria financeira de «ricos» já se dispuseram a seguir o exemplo do milionário norte-americano e do punhado de seus congéneres franceses que imploram permissão para pagar mais impostos. Entre os segundos está, por exemplo, o Amorim «rei» da cortiça e pelos vistos também do indecoro cívico. Mas é claro que ninguém se ilude: o que os ricos subitamente generosos tentam é fazer um seguro contra as consequências previsíveis. Como se contra o decurso da História pudesse haver seguros.



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