Páginas roubadas a um diário

Francisco Mota

Para a minha amiga des­co­nhe­cida da Guarda

Ex­tratos do diário de Ana P. L.

 

10.Se­tembro.2002

Hoje re­servei na Adega Vi­la­lisa, na Me­xi­lho­eira Grande. Tinha ou­vido falar tanto deste sítio que tinha cu­ri­o­si­dade de ir lá. Às 8 lá es­tava com a minha irmã, o seu ma­rido e mais dois amigos. Sen­tamo-nos num banco cor­rido de costas para a pa­rede numa mesa muito com­prida, onde já havia mais gente. Na mesa do meio sen­taram-se uns moços com ins­tru­mentos de mú­sica que se per­cebia que eram amigos dos donos da «tasca», como eles di­ziam.

Eu fi­quei em frente de um homem já com uns 40 anos que sorriu para mim e para todos nós. Fa­lava com os moços, com o co­zi­nheiro e ideó­logo Vila, que se sentou ao seu lado, e com o Lisa res­pon­sável pelas mesas, me­lhor dito pelas pes­soas porque as mesas eram só três.

Co­memos vá­rios pratos, mas dos que mais gostei foi da canja de con­qui­lhas, do xerém, da abrótea com arroz, das ca­va­li­nhas com to­mate e da sopa de rabo de boi com grão e hor­telã. A co­mida era tão sim­ples e tão sa­bo­rosa que era im­pos­sível fazer co­men­tá­rios ori­gi­nais. Era co­mida pobre, mag­ní­fica.

De vez em quando, so­bre­tudo quando a bar­riga es­tava já con­for­tada, os moços co­me­çavam a cantar o que lhes ape­tecia e tudo aquilo fi­cava muito bo­nito. Ad­mito que as jar­ri­nhas de vinho aju­davam a esta sen­sação, mas era belo. Re­parei que a pessoa que es­tava junto deles (o Pedro, soube mais tarde) lhes ia pe­dindo di­fe­rentes can­ções que eles to­cavam e can­tavam.

A minha irmã es­tava en­can­tada com tudo e eu de­cidi-me a ir falar com o Pedro para lhe dizer que éramos todos da Guarda e es­tá­vamos ali para co­me­morar os 55 anos da minha irmã. Pedi-lhe também se lhe po­diam de­dicar uma canção. O Pedro agarrou a minha mão, beijou-a e disse a sorrir: «vá des­can­sada, nada é im­pos­sível». Vi como fa­lava com um moço de sor­riso per­ma­nente, que mais tarde soube que se cha­mava João e to­cava gui­tarra. Se­guíamos co­mendo e con­ver­sando com toda a gente. Eu olhava os olhos do Pedro e ele sorria, mas mais nada. Es­tava ner­vosa e agora que es­crevo já não sei se era porque não saía a canção para a minha irmã ou pelos olhos fixos e sor­ri­dentes do Pedro. Já na al­tura do café, de re­pente todos os moços se vol­taram para nós e co­me­çaram a cantar can­ções di­zendo um deles «feliz ani­ver­sário». Toda a gente co­meçou a bater palmas. A minha irmã, que não tinha per­ce­bido nada dos mo­vi­mentos an­te­ri­ores, ficou pa­ra­li­sada pri­meiro, emo­ci­o­nada de­pois e de­bu­lhada em lá­grimas no fim. Não con­se­guia deixar de chorar. Eu fi­quei con­tente porque gosto muito dela apesar da di­fe­rença da idade. Ela fazia 55 e eu tenho 42.

A mú­sica não parou. Vejo que o Pedro se le­vanta do seu lugar com os olhos nos meus, vem para mim e diz: dan­çamos? Toda a gente que es­tava ali aplaudiu e eu não podia nem queria ficar sen­tada. Soube de­pois que era a pri­meira vez que se dan­çava na­quela casa. Ouvi o Vila dizer: «Tá bom, ist’hoje!». Ro­dámos pelo pe­queno es­paço livre ao som da mú­sica. A pri­meira canção foi só para nós, mas de­pois ou­tros pares se nos jun­taram. O Pedro não dizia nada e eu também não. Quando ter­minou a se­gunda canção disse-me «gostas?» Eu só pude dizer-lhe «muito!». O corpo dele chei­rava bem, mas não a per­fumes, só a homem la­vado. Eu sentia o seu calor e creio que ele o meu corpo. Então ele virou-se para o João e disse: «Ojalá que te vaya bo­nito». Viu a minha cara in­ter­ro­gante e disse-me: é uma das cen­tenas de can­ções dum me­xi­cano fa­le­cido em 1973, José Al­fredo Ji­menez, e nesta um homem se­para-se da mu­lher amada, de­se­jando-lhe que tudo lhe corra bem. É um pouco triste e é um clás­sico da mú­sica me­xi­cana». Um pouco de­pois co­mecei a ouvir essa canção e juntei-me mais a ele, que me dizia a letra no meu ou­vido. Era tão bela que tinha von­tade que nunca aca­basse e também de estar só com o Pedro nalgum sítio belo. Tive medo de mim. Tive medo de olhar nos seus olhos. Tive medo de perdê-lo.

A minha irmã con­se­guiu ter força para se le­vantar e dizer: «obri­gada a todos, foi o mais belo ani­ver­sário que tive na minha vida». Os moços co­me­çaram a tocar o Hino Na­ci­onal e havia um deles que sabia a letra com­pleta do hino e não só a parte que ha­bi­tu­al­mente can­tamos. De­pois, para nossa sur­presa co­me­çaram a tocar e a cantar a In­ter­na­ci­onal, também na sua versão com­pleta.Um deles tinha uma me­mória pro­di­giosa e sabia todas as le­tras. Somos da classe aco­mo­dada da Guarda e nunca po­díamos ima­ginar que pu­desse ser belo o que víamos e ou­víamos. Mas era! O Pedro can­tava com o punho no ar como ou­tros ali pre­sentes. Olhava-me pro­fun­da­mente, com os olhos a bri­lhar e eu, per­plexa e feliz, olhava esses olhos de­ci­didos e belos.

 

18. Se­tembro. 2002

Agora que estou na minha casa, na Guarda, re­vejo mil vezes aquela noite. Penso como pude eu, sempre vo­tante dos par­tidos que mandam, como pude eu, mu­lher que sa­cri­ficou a vida pes­soal até chegar a ser Pro­fes­sora Dou­to­rada e em breve Ca­te­drá­tica de Di­reito Civil na Uni­ver­si­dade de Coimbra, não ver que podia haver um mundo tão belo e tão perto de mim? Como pude eu en­con­trar be­leza na co­mida, no con­vívio com des­co­nhe­cidos, nas can­ções, na adesão forte a ideias que até agora eu ne­gava? Será que me en­ganei ao es­co­lher o ca­minho na minha vida? Talvez não, mas está claro que al­guma coisa está er­rada em mim.

E Pedro? Onde está, onde posso en­contrá-lo? Quando lhe per­guntei, só me disse aper­tando-me as mãos: «sou um mais dos muitos que amam a vida. Por isso gosto de estar con­tigo aqui hoje e que gostes de estar co­migo. Há muita gente como eu, que de­seja a jus­tiça, a igual­dade e a be­leza e que lu­tamos por isso. Pro­cura e en­con­trarás ou­tros como eu. Não te­nhas medo de lutar. Às vezes é duro ser ho­nesto con­nosco e com os ou­tros, mas pode ser o mais belo de tudo. Hoje foi. És muito bela. Gos­tava de beijar-te, mas acho que não de­ve­ríamos».

Fecho os olhos e ouço estas pa­la­vras. Sempre, sempre, sempre!



Mais artigos de: Argumentos

Recuos

A história é original e exemplar: o Ministério da Educação decidiu que, afinal, os professores que vão assegurar os horários ainda por preencher assinarão com as escolas «um contrato com a duração da necessidade transitória identificada...

O pão nosso de cada dia

Foi na verdade do nosso pão quotidiano que tratou o programa Prós e Contras na passada segunda-feira regressado aos nossos televisores. É claro que, tal aliás como na oração cristã, a palavra «pão» designa aqui a alimentação pelo menos um...

Fome de justiça social

«O Estado moderno e a democracia moderna obrigam a uma concepção nova relativamente ao serviço público. As redes de serviço público não podem ser exclusivamente centradas no Estado ou nas iniciativas estatais. Numa democracia moderna, assentam sempre na...