… E os outros

Francisco Mota

 Para a minha amiga Mar­ga­rida (Ot­tawa – Ca­nadá), que tem uma voz tão suave e in­si­nu­ante, que me levou a chamar-lhe há anos «a as­sas­sina da voz meiga»

Pa­rente é uma al­deia que não vem no mapa, que está a uns cinco qui­ló­me­tros de Avô, junto à ri­beira do Al­voco, aflu­ente do Alva, que por sua vez ter­mina no Mon­dego. Nela nasceu o An­tónio, ope­rador de má­quinas fer­ra­mentas com­pu­to­ri­zadas, numa fá­brica de au­to­mó­veis. Desta terra também é ori­gi­nária a fa­mília da Mar­ga­rida, que con­vida os seus amigos para passar uns dias, na­quelas casas de pedra pouco ha­bi­tadas, no fundo do vale donde se vê com di­fi­cul­dade a Serra da Es­trela, mãe de todos os rios. Este ano es­tava o Pedro, a Sandra e o seu in­fante Xavi, a Diana e o Nuno (estes dois grá­vidos), a Ra­quel e as fi­lhas, o Fe­lipe e a Amanda.

An­tónio falou com a com­pa­nheira Ma­nuela, para ver aonde iriam uns quinze dias, sem gastar muito di­nheiro. A Ma­nela era do Couço, con­celho de Co­ruche, também era ope­rária e res­pon­sável dum de­par­ta­mento de uma fá­brica de trans­for­mação de plás­ticos. Era a chefe de 7 ho­mens e ocu­pavam-se das obras di­fí­ceis da em­presa. Já tinha ido ao Pa­rente vá­rias vezes e gos­tava. Te­le­fo­naram à Tia Ce­leste, ha­bi­tante quase per­ma­nente da al­deia e à volta de quem cir­cu­lava tudo o que se pas­sava na terra. Ficou con­tente a Tia Ce­leste. Saíram da Moita, com o pe­queno carro car­re­gado de man­ti­mentos. À me­dida que se apro­xi­mavam, o An­tónio chei­rava o ar que con­si­de­rava seu, ca­lava-se e ao cruzar o Alva o co­ração batia-lhe mais forte. A Ma­nela sabia o que ele sentia e agarrou-lhe a mão com fir­meza. An­tónio não olhou para não co­meçar a chorar.

Ao chegar à terra, a pri­meira coisa era vi­sitar a Tia Ce­leste, re­co­lher a chave e limpar aquela casa onde não vi­nham há dois anos. En­tre­tanto a Tia in­formou-os de que na al­deia es­tavam muitos amigos da Mar­ga­rida: «são todos en­ge­nheiros, ju­ristas, ar­qui­tectos e até há um que faz filmes e está sempre a fo­to­grafar tudo. Mas não te pre­o­cupes, já vi que são boa gente». Apesar disto An­tónio ficou pre­o­cu­pado: «como é que vamos falar com esta gente?» E a Ma­nela, sempre livre, res­pondeu-lhe: «com a boca, como deve ser, An­tónio!». La­varam, var­reram, sa­cu­diram o pó e em três horas ti­nham a casa pronta. «Hoje vamos dormir bem, Ma­nela!»

Na manhã se­guinte, sem ca­mi­nhar muito en­con­traram a Tia e a Mar­ga­rida, que eles já co­nhe­ciam e que tinha tra­zido o seu com­pa­nheiro Ri­chard, Que­be­cois, ou seja, ca­na­diano de língua fran­cesa do Quebec. Eles fi­caram muito con­tentes e apre­sen­taram-lhes os ou­tros amigos. O An­tónio já sabia que a Diana, a Ra­quel e a Sandra eram ju­ristas e disse «muito prazer Sra. Dou­tora». Aí teve a pri­meira sur­presa. A Sandra disse-lhe «An­tónio aqui não há dou­tores nem en­ge­nheiros nem ar­qui­tectos, todos temos nome e é assim que nos cha­ma­remos». Um pouco per­plexo, porque na sua fá­brica não era assim, res­pondeu «Está bem Sandra. É Sandra, não é?» A tia Ce­leste anun­ciou que daí a dois dias iam fazer chan­fana, que já es­tava en­co­men­dada a cabra velha ao Ja­quim de Al­voco das Vár­zeas. Tinha que ser feita amanhã para ser co­mida no dia se­guinte. Cada um que fi­zesse o que pu­desse e sou­besse. A Ma­nela ofe­receu-se para fazer uma so­bre­mesa da terra dela e os ou­tros, um pouco des­pis­tados dis­seram que fa­riam o que lhes man­dassem. O An­tónio disse ao Pedro: «venha co­migo logo e vamos buscar e talvez cortar a cabra, que o Ja­quim já a deve ter pe­lado e limpo». A Diana disse que era ve­ge­ta­riana, mas comia peixe, e que não se pre­o­cu­passem com ela. Assim se passou aquele dia, entre pe­quenas con­versas entre todos e al­gumas sestas com­pen­sando o ar feio das ci­dades.

No dia se­guinte já com a cabra de corpo pre­sente, em bo­cados grandes, co­lo­caram-nos num al­guidar grande de barro preto, com o fundo cheio de ce­bolas cor­tadas e acres­cen­taram salsa, louro, banha de porco, tou­cinho, azeite, alhos, pi­menta preta moída na al­tura, cra­vi­nhos e noz-mos­cada. Co­briram tudo com vinho do Dão de que ti­nham uma boa re­serva de gar­ra­fões. Antes de pre­parar o forno do pão, o An­tónio disse, façam vocês o lume como a Tia Ce­leste disser, que eu tenho que ir fazer outra coisa. Ne­nhum pro­blema. So­brava gente.

O An­tónio apa­nhou uma cana de pesca e, como há tantos anos atrás, foi para um pego que ele co­nhecia na con­fluência do Al­voco com o Alva, pôs a bor­bo­leta me­tá­lica e armou-se de pa­ci­ência. Em três horas tinha apa­nhado uma truta grande, duas pe­quenas e um barbo. Com isto na cesta, chegou ao pé da reu­nião de toda aquela gente e disse: «Diana, amanhã en­quanto nós nos alar­vamos com a chan­fana, tem aqui estes peixes para si. São nossos, dos nossos rios, ainda saltam». Ela le­vantou-se e deu-lhe um beijo.

A chan­fana cozeu len­ta­mente toda a noite, e só foi ti­rada do forno perto da hora do al­moço. Forno e chan­fana es­tavam frios, como devia ser, pelo que se fez um lume no chão e numa trempe se aqueceu o al­guidar até voltar a estar tudo quente. De­pois passou à mesa, acom­pa­nhando uma tra­vessa enorme de ba­tatas co­zidas, que al­guém tinha feito. Também havia sa­lada, que não teve muito êxito, e abun­dante vinho tinto. Já sem es­paço ainda deram conta das pi­nho­adas do Couço, feitas pela Ma­nela (meio litro de mel aque­cido onde se deita 1 quilo de pi­nhões, en­quanto ainda está quente vão-se fa­zendo mon­ti­nhos em fo­lhas de la­ran­jeira la­vadas. Deixa-se ar­re­fecer antes de comer).

A coisa tinha sido séria. Al­guns di­ge­riam com a ajuda de uma gar­rafa de ba­gaço saída de não sa­biam donde. Sentia-se um bem estar que tinha origem no estô­mago e na at­mos­fera entre eles. Foi então que a Ma­nela disse: «Neste am­bi­ente, quase con­se­guimos es­quecer as di­fi­cul­dades das pes­soas que tra­ba­lham e so­bre­tudo das que não tem tra­balho. Não sei se algum de vocês, com cursos uni­ver­si­tá­rios, tem estes pro­blemas,(vozes: eu, e eu, e eu...) mas nós que lu­tamos todos os dias no tra­balho e fora dele, sa­cri­fi­cando o nosso des­canso, temos pena de não ver mais gente como vocês ao nosso lado nas lutas e nas ruas. Sei que há classes e que os ope­rá­rios somos os úl­timos sempre, mas também os mais cons­ci­entes, talvez porque somos os que mais temos que perder. Digo isto como classe e não como pessoa in­di­vi­dual». «Pode ser que tenha razão, mas eu prezo muito a minha li­ber­dade in­di­vi­dual» disse o ar­qui­tecto. «Claro que sim, volveu a Ma­nela , todos pre­zamos muito a li­ber­dade e o pen­sa­mento livre, mas nós pomos isso ao ser­viço do co­lec­tivo e não da nossa razão in­di­vi­dual. Uma pessoa só, não é nada, mesmo que tenha razão. Juntos com as opi­niões com­par­ti­lhadas e mu­tu­a­mente aceites, somos uma grande força. Bom, não quero per­turbar este mo­mento lindo que es­tamos a viver, mas acho que o An­tónio sim».

«É ver­dade, nos de­bates há tese e an­tí­tese e sempre se tem que chegar a uma sín­tese. É o ma­te­ri­a­lismo di­a­lé­tico. Pro­ponho como sín­tese que amanhã às cinco da manhã, co­me­cemos a ca­mi­nhada atée ao Monte Col­co­rinho que está a 1300 me­tros de al­tura. São só umas três horas para cima e me­tade para baixo. De­vemos levar farnel e muita água. Aqui todos fi­zemos isso juntos, co­mu­nistas ou não».

Houve uma mi­noria ín­fima que se re­cusou a aceitar a sín­tese.

 



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