Ainda o primado da Constituição?
A temática que me proponho abordar, em breves palavras, é muito pertinente e actual. Num tempo em que a «ditadura» da troika, a mando de poderosas instâncias internacionais, traça o caminho do nosso País, a Constituição da República Portuguesa (CRP) arrisca converter-se num papel sem operatividade prática. E pior ainda: vai-se perdendo a supremacia das normas constitucionais sobre as normas internacionais numa subversão da soberania portuguesa, que não tem um fim à vista.
A CRP está aí e ainda sobrevive, o que significa que merece que lutemos por essa sobrevivência
Pelo menos, no seu ponto essencial da definição, institucionalização e garantia dos direitos fundamentais, no seu sentido mais lato (dos direitos, liberdades e garantias aos direitos económicos, sociais e culturais), a CRP pode converter-se, repito, num horizonte longínquo para os cidadãos.
No fundo, e noutra linguagem, aquilo que hoje se chama Estado de Liberdades e Estado Social pode ficar, na prática, despido, à face da Lei Fundamental, apesar de tudo o que dela pode ainda recolher-se a bem dos cidadãos (isto é, os direitos fundamentais estão lá, mas a sua concretização, no terreno, passará a mera ilusão).
Atendo-me agora ao relacionamento entre o direito interno e o direito internacional, face à CRP, arrisco-me a apontar linhas de harmonia e linhas de desarmonia, numa leitura atenta à letra e ao espírito da Lei Fundamental, cujos 1.º e 2.º artigos são os pilares decisivos, proclamando a «dignidade da pessoa humana» e o empenho na «construção de uma sociedade livre, justa e solidária», a par da definição da República Portuguesa como «um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular», tendo em vista «a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa».
Ora, são linhas de harmonia, no sentido de se inscreverem naturalmente na letra e, sobretudo, no espírito da CRP, a par do direito reconhecido às associações sindicais, no âmbito da liberdade sindical, de «estabelecer relações ou filiar-se em organizações sindicais internacionais» (art.º 55.º, n.º 5), as seguintes:
- Em primeiro lugar, o reconhecimento de direitos fundamentais fora da CRP, como sejam, os constantes «das regras aplicáveis de direito internacional» (art.º 16.º, n.º 1), podendo apontar-se os exemplos clássicos de Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção dos Direitos do Homem, mas sem esquecer o Pacto Internacional sobre direitos económicos, sociais e culturais, o Pacto Internacional sobre os direitos civis e políticos e o conjunto das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Acresce o princípio decorrente da n.º 2 do art.º 16.º, segundo o qual a interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem respeitar aquela Declaração Universal, o que é decisivo no plano da densificação dos conceitos indeterminados ou vagos referentes a esses direitos.
- Em segundo lugar, a atribuição aos estrangeiros residentes no território nacional e aos cidadãos dos estados-membros da União Europeia também residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, de capacidade eleitoral passiva para os actos eleitorais das autarquias locais e para os actos eleitorais do Parlamento Europeu, respectivamente, de acordo com o disposto no art.º 15.º, n.ºs 4 e 5.
- Depois, a aplicação da lei criminal portuguesa a comportamentos de natureza criminosa «segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos», como sejam, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz.
- Por fim, a previsão do direito de asilo e do estatuto do refugiado político aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, como prevê o art.º 33.º, n.ºs 2, 8 e 9.
Linhas de desarmonia
Por contraponto, são linhas de desarmonia, no sentido de que, em bom rigor, não podem rever-se, em especial, no espírito da CRP, iluminado ainda pelo Preâmbulo, que aponta para «a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno», as seguintes:
- Começo pelo regime da extradição demarcado no art.º 33.º, n.ºs 3 e 4, ao arrepio daquele horizonte, na medida em que abre a porta à «extradição de portugueses do território nacional» – e só pode ser a mando de poderosas instâncias internacionais, pois aplica-se aos «casos de terrorismo e de criminalidade organizada» – e também abre a porta à extradição de estrangeiros «por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida», quando o nosso ordenamento jurídico exclui esse tipo ou medida de segurança (art.º 30.º, n.º 1)
- Em seguida, a incumbência definida no art.º 275, n.º 5, para as Forças Armadas de «satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar», e todos sabemos o que isso significa, com o envolvimento de Portugal na NATO, e não só, revelando a realidade internacional de conflitos armados o resultado desse envolvimento, o que contraria até o programa importante de princípios definidos no art.º 7.º, para as relações internacionais, em especial, o da «solução pacífica dos conflitos internacionais», o da «não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados» e o da «dissolução dos blocos políticos-militares», bem como o reconhecimento do «direito à insurreição contra todas as formas de opressão».
- Finalmente, a aceitação da «jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma», que consta do n.º 7 do art.º 7.º, que inclui a aceitação dessa jurisdição para cidadãos nacionais, aliás já consumada, a par da aceitação da aplicação das «normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia» (art.º 33.º, n.º 5), de que é exemplo corrente o mandado de detenção europeu de 2003, e todo o âmbito do vasto campo da cooperação judiciária internacional em matéria penal, com regulação na Lei n.º 144/99, de 31/8.
E sem esquecer a norma do art.º 8.º, n.º 4, segundo a qual, aceitando-se a recepção automática na ordem interna das «disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências», acrescenta-se, e isto é o carácter espúrio da norma – que a aplicação se faz «nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático». Assim mesmo, a obediência ao direito da União, com o sentido de uma prevalência absoluta ou quase absoluta desse ordenamento jurídico internacional sobre o direito interno, envolvendo até responsabilidade civil extracontratual do Estado o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do «direito da União».
Por último, ainda neste patamar do direito internacional, temos que lembrar, infelizmente, o «Memorando de entendimento sobre condicionalismos específicos de política económica», subscrito por UE/FMI/BCE e PS/PSD/CDS, também conhecido por «Memorando da troika», um verdadeiro pacto de agressão, de que só pode resultar empobrecimento, recessão económica, desemprego e injustiças sociais.
Perversão do Estado Social
Tendo em conta apenas aquilo que chamo de intromissões legislativas impostas ao Governo e que ultrapassam já as três dezenas, pode apontar-se como mais gravosas: as limitações das admissões de trabalhadores na Administração Pública; a redução dos cargos dirigentes e unidades administrativas, a nível dos municípios e regiões autónomas; a revisão da Lei das Finanças Regionais e das Finanças locais; a tributação de bens imóveis; a regulamentação da administração autónoma, tendo em conta, entre o mais, o encerramento de entidades existentes; a legislação sobre taxas moderadoras; as múltiplas reformas gravosas no campo do trabalho, tendo em vista a compensação por cessação do contrato de trabalho, a reforma do sistema de prestações de desemprego, o regime dos despedimentos e dos tempos de trabalho, os ajustamentos salariais de acordo com a produtividade ao nível das empresas (sem esquecer a revisão de códigos, como o do processo civil, o da insolvência, o da contratação pública). Acresce as inúmeras medidas de carácter administrativo-financeiro, a par de medidas fiscais, tudo conduzindo aos chamados cortes de salários/pensões, com incidência directa nas remunerações/aposentações, sacrificando o quotidiano dos cidadãos e revertendo ao nível de vida de 30 anos atrás.
Tudo isto é muito mau e tem o selo das instâncias internacionais, que verdadeiramente atentam contra a nossa soberania, estando já a caminho o esforço governamental para aquelas e outras intromissões legislativas, com o beneplácito da maioria instalada na Assembleia da República (a dúvida é se, em subserviência àquelas instâncias, todo aquele programa será cumprido, de acordo com as imposições do «Memorando da troika»).
Enfim, tenho a consciência de que trouxe aqui uma visão pessoal negativa, e até provocadora, de um diagnóstico parcelar da situação que estamos a viver, em que parece que o ordenamento jurídico interno, incluindo a CRP, passa à margem da actuação dos órgãos de soberania que nos comandam – o PR, a AR e o Governo – e só importa uma visão redutora do bem comum, do interesse público, postergando os direitos dos cidadãos.
Mas isto não é totalmente novo, pois as sucessivas revisões constitucionais, e não falando numa verdadeira revisão de facto que parece estar a instalar-se, em especial, após o «Memorando da troika», deturparam o texto originário da CRP. Por um lado, abriram caminho ao legislador ordinário para tomar soluções legislativas que até então esbarravam na CRP, e, por outro lado, perturbaram, em certos aspectos, o exercício pelos cidadãos dos seus direitos, sobretudo, os direitos económicos e sociais.
Sempre uma verdadeira perversão do Estado Social, a partir da primeira revisão de 1982, em que tudo vale a favor do Fisco, impondo-se cada vez mais a fórmula da «inevitabilidade», para que não se diga que há surpresas (é assim, porque tem de ser assim, eis a explicação simples dos governantes).
Em todo o caso, a CRP está aí e ainda sobrevive, o que significa que merece que lutemos por essa sobrevivência. O caminho de luta pode e deve passar por múltiplas formas, mas uma delas é a litigância nos tribunais, caso a caso, provocando até a intervenção do Tribunal Constitucional. Embora esta via dos tribunais não tenha presentemente a confiança dos cidadãos – e o Tribunal Constitucional não tem sido um tribunal de justiça material, em favor dos direitos dos cidadãos –, a verdade é que ela não pode ser menosprezada. Pese, embora, o entendimento corrente daquele Tribunal, reafirmado recentemente, num acórdão de 2011 (n.º 396/2011), dando prevalência ao que chama «interesse público», decorrente de uma ideia de situação de emergência, sem qualquer densificação desses conceitos de carácter vago ou indeterminado (quando e como se verifica tal situação, como é preenchida e quais os limites). E, a par dela, há a luta sindical, a luta nas ruas e o mais que a imaginação popular proporcione a cada momento, pois, como se costuma dizer, se não há luta, perde-se para sempre, mas se há luta, pode ganhar-se alguma coisa.
* Juiz Conselheiro Jubilado