Terramoto no comércio
Há muito que as grandes cadeias de super e hipermercados pretendem pagar os feriados nacionais e os domingos como se fossem dias normais de trabalho e foi para isso que muitas decidiram abrir no 1.º de Maio. Mas a operação do Grupo Jerónimo Martins nas lojas Pingo Doce abriu uma nova e perigosa frente, na guerra pelo controlo do mercado.
Falências e concentração vão acelerar, num sector dominado por dois grupos
O alerta foi dado pelo Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, que reuniu de emergência a sua direcção, no dia 3, e decidiu avançar para a realização de reuniões a nível regional, nas próximas semanas.
Em conferência de imprensa, nessa quinta-feira à tarde – a que, não obstante a actualidade do tema, apenas compareceram três jornalistas – o presidente do CESP/CGTP-IN e outros dirigentes, que são também trabalhadores de empresas deste sector, exigiram medidas para a necessária regulação e acusaram o Governo de não tomar decisões políticas no sentido de promover uma fiscalização eficaz. «Há competências em Portugal para fazer isso, o que falta é a decisão do poder político, mas ele está comandado pelo poder económico», disse Manuel Guerreiro, que é igualmente membro da Comissão Executiva da CGTP-IN.
O sindicato reafirmou ter indícios de que o mega desconto de 50 por cento, para quem fizesse compras acima de cem euros apenas no dia 1 de Maio, terá assentado na prática de dumping (venda abaixo do preço de custo), que a lei não permite. A própria ASAE (Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica) veio depois confirmar isso, pelo menos relativamente a alguns artigos. Mas o CESP faz exigências mais amplas quanto à falta de regulação da actividade das grandes superfícies comerciais – incluindo o cumprimento da legislação laboral e do contrato colectivo de trabalho – e aponta práticas há muito conhecidas que precisam de ser combatidas, sob o risco de se agravar cada vez mais a destruição de empresas e de emprego e de o sector ficar concentrado em cada vez menos grupos económicos.
«Uma operação com esta dimensão vai provocar um terramoto no sector», pois não deixará de ter resposta de outras cadeias, prevendo Manuel Guerreiro que os «primeiros mortos» desta catástrofe serão os trabalhadores. Mas vão também ser sacrificadas as empresas de menor dimensão e com menor quota de mercado, tal como os fornecedores.
Naquela tarde, já era conhecida a campanha de descontos de 50 por cento, lançada por uma rede de lojas especializadas de mobiliário e decoração, a Ikea. O sindicato, que no dia 2 levou o problema à reunião da Concertação Social, escreveu no dia 3 ao ministro da Economia, alertando-o para indícios de que a Modelo Continente estará a preparar uma iniciativa de resposta. A esta cadeia, do Grupo Sonae, e ao Pingo Doce, já pertencem 70 por cento das vendas.
No sector alimentar, apenas estes dois grupos, «apoiados à vez pelo poder», têm capacidade para entrar numa «guerra de preços» como a que pode ter começado no dia 1 de Maio.
As grandes multinacionais presentes em Portugal – como os grupos Carrefour (Dia Mini Preço) ou Auchan (Jumbo e Pão de Açúcar) – não revelam interesse, pelo contrário. O sindicato recorda que continua a venda de lojas Mini Preço e assinala que, pela primeira vez, foi anunciado o fecho, em Junho, de um hipermercado Jumbo (em Santarém).
As redes de menor dimensão ficam a grande distância dos dois grupos dominantes, têm evidenciado dificuldades e já houve rescisões, despedimentos e encerramento de lojas, afirmando o CESP que há casos de salários em atraso.
Para os concorrentes, uma operação como a que o Pingo Doce realizou significa uma quebra de vendas de dez por cento nos próximos meses, estima o CESP, concluindo que «isto vai apressar as falências».
Por outro lado, saem prejudicados processos de recuperação de cooperativas de consumo, que encontraram investidores interessados. É o caso da Alicoop, no Algarve, com as lojas Alisuper, que começaram a reabrir. Mas o sindicato também admite dificuldades acrescidas nas assembleias de credores da Cooplisboa (amanhã) e Pluricoop (hoje), que vão discutir a aprovação de planos de viabilização.
Muito graves consequências são de esperar no pequeno comércio tradicional que ainda sobrevive. Muitas pessoas, que «compraram no Pingo Doce até caírem para o lado», vão agora limitar-se a comprar fiado na mercearia para o dia-a-dia.
O sindicato não critica os consumidores. «Percebemos as opções de quem vê o rendimento reduzido todos os dias», disse Manuel Guerreiro, deixando um alerta, que reporta à situação conhecida nos exemplos da electricidade, do gás ou dos combustíveis: «Quando um domina, os preços aumentam.»
Regulação necessária e possível
Há pouco mais de ano e meio, no final dos trabalhos da Assembleia da República, o governo do PS retomou uma velha iniciativa do PSD, que fora convenientemente relegada em véspera de anteriores eleições. Nasceu assim, apadrinhado com um invulgar processo de promulgação pelo PR, o Decreto-Lei n.º 111/2010, publicado a 15 de Outubro, que veio oferecer às grandes superfícies comerciais a possibilidade de terem as portas abertas das seis às 24 horas todos os dias, incluindo o domingo. Uma detalhada descrição deste caso consta na Apreciação Parlamentar N.º 73/XI/2.ª, iniciativa do PCP em Novembro de 2010.
O CESP lembra, agora, as responsabilidades políticas de quem, com a crescente liberalização, «criou as condições para existirem estas guerras». Desse poder político, o sindicato exige que ponha termo à actual situação, defendendo «uma regulação em termos que nunca existiram» em Portugal.
Manuel Guerreiro lembrou que em França, o país onde nasceram os supermercados, existe «uma polícia fiscal» para este sector, assim evidenciando o grande atraso nacional nesta matéria. Mas só com empenho político será possível regular a actividade de empresas que têm vendas superiores a cinco mil milhões de euros por ano e que controlam mais um um terço do mercado e têm condições para esmagar a produção nacional – como sucede com cada um dos dois maiores grupos da grande distribuição.
Limitando-se àquilo que pode ser decidido em Portugal e não tem a ver com imposições da União Europeia, o CESP reclama regras mais apertadas para:
– os horários de funcionamento dos hiper e supermercados, impondo o encerramento ao domingo;
– a implantação dos estabelecimentos, acabando com a proliferação de «barracos importados»;
– transparência dos contratos firmados com produtores e fornecedores, com uma entidade pública a controlar essas relações comerciais, combatendo a fuga aos impostos e as discriminações (por exemplo, nos prazos de pagamento dos produtos colocados nos supermercados);
– controlo de contabilidades, inventários de existências reais, movimentos financeiros;
– registo das vendas, como já sucede com os grossistas (e que, não existindo hoje, está a transferir compras de retalhistas para as caixas de «consumidores finais).
O sindicato afirma que «o Estado sabe disto melhor do que nós». Mas os dirigentes do CESP indicaram alguns exemplos de práticas que importa contrariar e punir, como a sub-facturação («compram dez, mas vêm 20») e os descontos que são exigidos a fornecedores sobre vendas já realizadas («uma nota de crédito de dez por cento, no fim do ano»).
Valeu a pena fazer
um grande 1.º de Maio
No comunicado que divulgou dia 3, o CESP/CGTP-IN começa por valorizar «a participação de milhares e milhares de trabalhadores, forçados a recorrer à greve» e que «resistiram à violenta ofensiva da grande distribuição, para tornar os feriados nacionais e domingos dias normais de trabalho». Desta forma, «deram uma positiva contribuição para as maiores comemorações do 1.º de Maio dos últimos anos em Portugal».
Logo de seguida, o sindicato «manifesta solidariedade e compreensão com os trabalhadores submetidos a prestação de trabalho em condições duríssimas, pressionados pelas empresas e condicionados nas suas opções económicas pelos miseráveis salários pagos no sector».
Já as empresas que decidiram abrir no 1.º de Maio apresentam «faustos e gordos lucros» mas «há dois anos que não negoceiam o revisão salarial dos seus trabalhadores e querem que estes sejam sujeitos a horários selvagens de 12 horas por dia e 60 horas por semana» – tinha o sindicato protestado, numa carta que endereçou no final de Abril ao presidente da associação patronal APED.
Um protesto semelhante, junto da Autoridade para as Condições do Trabalho e com conhecimento aos presidentes das câmaras municipais do distrito, partiu da União dos Sindicatos de Braga. «Várias grandes e médias superfícies e diversas empresas, particularmente do sector têxtil e subsectores (muitas delas com a produção de 30 a 40 por cento da sua capacidade), estão a exigir aos seus trabalhadores, através de comunicados afixados, que trabalhem no feriado do 25 de Abril e no 1.º de Maio, não porque têm muito trabalho para fazer, mas para se irem “habituando” a trabalhar nos dias feriados», escreveu a estrutura distrital da CGTP-IN, a 23 de Abril. Como exemplo, indicou as fábricas da Têxtil Manuel Gonçalves, em Ronfe e São Cosme do Vale.
Para contrariar uma tendência no mesmo sentido, fundamentada em falsas informações das empresas, o Sindicato dos Jornalistas emitiu segunda-feira um esclarecimento sobre a compensação por trabalho em dia feriado. Para justificarem o não pagamento das compensações devidas, algumas publicações periódicas afirmaram que tal só sucederia ao fim de quatro feriados. O SJ remete para o contrato colectivo de trabalho: «O trabalho prestado em qualquer um dos dias de descanso, em dia feriado ou de férias, conta sempre pelo mínimo de meio dia de trabalho, se a prestação de trabalho durar até três horas, incluindo o tempo de deslocação, e de um dia completo, quando a prestação de trabalho exceder três horas, incluindo o tempo de deslocação, confere ao jornalista o direito, respectivamente, a meio dia ou a um dia de descanso, a gozar num dos três dias seguintes, e é pago como trabalho suplementar.»
Contas do contrato
No caso do Pingo Doce, o ataque ao Dia Internacional dos Trabalhadores também se insere na feroz ofensiva que desencadeou para pagar ainda menos ao seu pessoal, por via da desregulação dos horários.
O contrato colectivo de trabalho que a APED firmou com as estruturas da CGTP-IN, publicado em 2008, estipula uma jornada laboral de oito horas e um limite máximo de 40 horas por semana, com garantia de dois dias de descanso semanal.
É considerado trabalho nocturno o que for prestado entre as dez horas da noite e as sete da manhã – e deve ser remunerado com um acréscimo de 25 por cento.
O trabalho ao domingo, nos casos em que o horário de funcionamento o prevê, deve ser compensado com um subsídio equivalente a um dia normal de trabalho; além disso, o trabalho prestado num dia de descanso semanal ou em dia feriado deve ser pago com um acréscimo de cem por cento.
Os horários de trabalho podem sofrer alterações globais, com oito dias de antecedência; o prazo é de 30 dias para horários diversificados ou contínuos; o período normal de trabalho pode ser acrescido de duas horas diárias, que não contam como trabalho extraordinário. O trabalho suplementar, limitado a 200 horas por ano, deve ser remunerado com um acréscimo de cem por cento.
Com salários médios pouco acima dos 650 euros, segundo o CESP, só o facto de a empresa prometer pagar o dia de acordo com o que estipula o contrato colectivo (que por norma não respeita) já representaria uma forma de pressão, quantificada num valor entre 60 e 65 euros. Nalguns casos, foi prometido ainda pagar o almoço. Como tal não bastasse para os objectivos do Pingo Doce, os seus responsáveis recorreram ainda a práticas que o sindicato detectou também noutras empresas do sector. Foi feito um inquérito escrito, a contar para a avaliação profissional, para que cada trabalhador declarasse se iria ou não trabalhar no 1.º de Maio. Houve trabalhadores chamados a reuniões individuais sucessivas, subindo o nível de responsabilidade do representante patronal, mas também foram promovidos plenários, onde chefias lançaram ameaças a propósito do futuro dos empregos.
Mesmo assim, o CESP afirma que houve estabelecimentos em que mais de metade dos trabalhadores não foram trabalhar. Terão perdido cerca de 95 euros cada um, segundo o testemunho de um dos dirigentes, na conferência de imprensa. A empresa decidiu ainda puni-los com a discriminatória exclusão no mega desconto que lançou esta semana, apenas para quem trabalhou no dia 1 de Maio.
Feitas as contas, resistir e celebrar o 1.º de Maio só pode ter saldo positivo. Por um lado, pesa o valor dos direitos que as empresas se recusam a cumprir e querem mesmo destruir – como já declararam nas negociações do contrato colectivo, em 2010. Por outro lado, nenhum dinheiro bastará para pagar as mazelas físicas e psicológicas provocadas pelas condições em que foi desempenhado o trabalho no feriado, especialmente na cadeia Pingo Doce. Mais do que tudo, continua a não estar à venda a dignidade de milhares de trabalhadores, cuja atitude continuará a chamar outros para a resistência e a luta de todos.