O cartaz de Brecht

Francisco Mota

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Para a minha eterna amiga, sem nome, nem mo­rada (Berlim)

Há uns trinta anos, o meu tra­balho le­vava-me muitas vezes a Berlim e à RDA. Che­guei a co­nhecer bas­tante bem os dois Ber­lins e as duas Ale­ma­nhas e até a falar o su­fi­ci­ente para não passar fome. Também é ver­dade que nas pri­meiras duas ou três vi­a­gens ia acom­pa­nhado duma pessoa que fa­lava bas­tante bem alemão.

Assim fui co­nhe­cendo os há­bitos, não tão frios como se diz, a exa­tidão, também não tão real como eles dizem, e ver como as pes­soas aca­ri­nhavam o es­tran­geiro de formas es­tra­nhas, mas claras. Por exemplo: du­rante uns anos e por causa duma im­por­tante feira que se re­a­li­zava em Leipzig, ca­lhava sempre fazer anos nesses dias. Os meus par­ceiros co­mer­ciais, sa­biam isso e todos os anos me en­tre­gavam um enorme ramo de flores, que eu tinha que levar co­migo, da feira para o hotel. Toda a gente que se cru­zava co­migo fi­cava a saber que eu fazia anos, e sor­riam como forma de me dar os pa­ra­béns. Na re­cepção do hotel, a mesma coisa, e quando eu ter­mi­nava o meu dia de ver­gonha, porque em Por­tugal não se cos­tumam ver ho­mens com ramos de flores e até se pensa «que tipo es­qui­sito!», dei­tava-me na cama a des­cansar. Poucos mi­nutos de­pois, ba­tiam-me à porta para me tra­zerem uma enorme jarra de vidro com água, que eu não tinha pe­dido, e aí de­po­si­tarem as mi­nhas flores. Ao meu Danke, res­pondia-me a se­nhora com um enorme sor­riso.

Comia-se muito, e quase sempre bem, na RDA. Os Eis­bein mit Sau­er­kraut, ou seja pernil de porco que es­teve em sal­moura uns dias, com couves fer­men­tadas (em França gchou­cruteh) eram um exa­gero e um prato dava para vá­rias pes­soas, mas re­al­mente cada pessoa re­cebia uma dose igual desse ou de outro prato. As cer­vejas eram de meio litro para cima. Uma bar­ba­ri­dade!

Um dia, em Berlim, con­vi­daram-me para comer ganso as­sado na fa­mosa Fri­e­de­ris­chs­trasse, rua onde entre as duas guerras os ale­mães per­diam a ca­beça e se de­di­cavam ao prazer puro e duro, quer fosse comer, beber, ver es­pe­tá­culos e pra­ticar todas as va­ri­antes se­xuais in­ven­tadas ou por in­ventar. Claro que isto era para quem tinha di­nheiro. Esse am­bi­ente está bem re­tra­tado no filme «Ca­baret» de Bob Fosse (1972) com Liza Mi­nelli, Mi­chael York e Joel Grey.

Dizia eu que, anos de­pois da lou­cura hi­tle­riana-nazi, mas na mesma rua, con­vi­daram-me para comer ganso as­sado. Aceitei ime­di­a­ta­mente. A carne do ganso, de­vido à grande quan­ti­dade de gor­dura do bicho, apa­rece no prato, bem as­sada, com a pele es­ta­la­diça e a carne com a quan­ti­dade su­fi­ci­ente de gor­dura, que a faz sa­bo­rosa sem chegar a ser en­jo­a­tiva. Foi a minha es­treia de ganso as­sado no forno. Vinha acom­pa­nhado de maçãs e ameixas secas que fa­ziam o re­cheio, e as ine­vi­tá­veis ba­tatas as­sadas. A ba­tata é om­ni­pre­sente na Ale­manha.

Quando pas­seava pela fa­mosa Ave­nida Unter den Linden (De­baixo das Tí­lias), que vai di­reita à porta de Bran­den­burgo, que toda a gente já viu na te­le­visão, re­parei que muito perto, num anúncio re­dondo, no tecto duma casa iso­lada, se lia Ber­liner En­semble, ou seja a casa que a RDA deu a Brecht para re­si­dência per­ma­nente da sua com­pa­nhia, além de um te­atro para mos­trar as suas obras. Com­prámos dois bi­lhetes (ia com o tra­dutor) e fomos ver «A ópera dos três vin­téns», onde ac­tu­avam des­cen­dentes de Brecht e da sua mu­lher He­lene Weigel e onde todos os ac­tores trans­mi­tiam uma força enorme quer fa­lando, quer can­tando. E que bem can­tavam a mú­sica de Kurt Weil!

No in­ter­valo fomos para o átrio onde havia uma banca para com­prar coisas re­la­ci­o­nadas com o te­atro de Brecht. Vi o cartaz que Pi­casso ofe­receu à com­pa­nhia, uma pomba azul tão sim­ples e bela que emo­ci­o­nava, ro­deada de pa­la­vras como uma mol­dura. As pa­la­vras eram «Ber­liner En­semble» re­pe­tidas vá­rias vezes. À minha frente es­tava uma moça duns vinte anos, corpo fran­zino, cara an­ge­lical, olhos azuis, pele branca e ca­belos dou­rados, que com­prou um cartaz. Senti logo sim­patia por ela. Eu pedi o mesmo e a em­pre­gada disse-nos que o úl­timo tinha sido ven­dido à moça que nos pre­cedeu. Fi­quei triste.

Tocou o sinal de que o es­pe­tá­culo ia re­co­meçar, sen­tamo-nos, e eu, com o meu eterno vício de ver pes­soas, virei-me para trás e, no meio dos as­sentos cheios, vejo-a. Olhamo-nos, menos tempo do que leva a contar e apa­garam-se as luzes. A peça ter­minou, saímos, não sem que antes eu dei­tasse uma olha­dela à banca, onde a em­pre­gada me fez logo um «não» com a ca­beça. Pa­ci­ência, disse para mim, mas re­al­mente es­tava triste. Quando tí­nhamos an­dado uns cin­quenta me­tros, vi a minha amiga des­co­nhe­cida, pa­rada com o cartaz en­ro­lada na mão. Di­rigiu-se a mim e disse-me: «Ofe­reço-lhe o cartaz, porque vi que não o con­se­guiu com­prar». Disse isto com um ar muito sério, como se me ti­vesse rou­bado ela o cartaz. Pro­testei, que não queria, que talvez dentro de uns meses vol­tasse ao te­atro e po­deria com­prar um para mim. Ela es­tendeu o braço de­ter­mi­nado na minha di­reção e eu aceitei o cartaz. Uma leve névoa apa­receu no ar en­quanto nos olhá­vamos num si­lêncio que pa­receu durar horas, mas que re­al­mente foram dez ou quinze se­gundos. Con­videi-a a tomar um café e con­versar uns mi­nutos. «Obri­gada mas é tarde, tenho que voltar a casa. Guarde o cartaz como sinal do nosso comum amor por Brecht». Co­meçou a correr en­quanto nós fi­camos pa­rados a vê-la de­sa­pa­recer na noite.

Não foi fácil ador­mecer nessa noite.



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