A política de transportes do Governo

Garantir o crescimento das rendas do Capital

Manuel Gouveia

Co­meçam a ser co­nhe­cidos os Re­la­tó­rios e Contas das em­presas pú­blicas de trans­portes re­fe­rentes ao ano de 2011. É ver­dade que quase todos os dias lemos algum nú­mero sobre estas em­presas na co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nada, mas com hon­rosas ex­cep­ções trata-se sempre de ma­ni­pu­la­ções pseudo-jor­na­lís­ticas, peças es­critas por Agên­cias de Co­mu­ni­cação pagas pelo Go­verno e pelos ca­pi­ta­listas do sector, e de­pois co­pi­adas por quem nada es­tuda, nada in­ves­tiga e sobre tudo fala e es­creve. Esses nú­meros que vão sendo ati­rados contra a po­pu­lação des­tinam-se sim­ples­mente a eli­minar a re­sis­tência po­pular à en­trega destas em­presas à ex­plo­ração ca­pi­ta­lista, e a cri­mi­na­lizar a re­sis­tência e a luta dos tra­ba­lha­dores.

Ana­li­semos então essas contas de 2011 (a mai­oria delas já dis­po­ní­veis nos res­pec­tivos sites na In­ternet) e ve­jamos em que me­dida as teses ven­didas à opi­nião pú­blica se sus­tentam.

Nas 11 em­presas1 cujas contas já estão pu­bli­cadas, e como pode ser visto no Quadro 1, a di­mi­nuição das des­pesas com pes­soal é su­pe­rior a 100 mi­lhões de euros. Re­gista-se uma di­mi­nuição de 11,3%, con­se­guida es­sen­ci­al­mente por duas vias: pelo des­pe­di­mento de cen­tenas de tra­ba­lha­dores; e pelo roubo nos sa­lá­rios dos res­tantes tra­ba­lha­dores por via do OE2011. Mas esta média é mi­ti­gada pelo facto de a maior em­presa do sector (a TAP) ter apli­cado roubos sa­la­riais subs­tan­ci­al­mente me­nores do que nas res­tantes em­presas – a média das res­tantes 10 em­presas é de uma re­dução de des­pesas com sa­lá­rios de 16,5%!

Se ti­vermos em conta que estas re­du­ções de 2011 se mantêm no es­sen­cial em 2012, sendo ainda agra­vadas pelos roubos dos sub­sí­dios de Natal e de fé­rias e pelas al­te­ra­ções no Có­digo de Tra­balho, per­ce­be­remos que a média de re­dução da massa sa­la­rial nas em­presas pú­blicas de trans­portes em 2012 é já de 30%!

 

Um roubo que vai di­rei­tinho para a Banca

 

Ao roubo nos sa­lá­rios dos tra­ba­lha­dores tem o Go­verno cha­mada de sa­cri­fí­cios, ape­lando à com­pre­ensão destes. Isto não é ver­dade em lado ne­nhum. Mas no caso das em­presas pú­blicas de trans­portes a si­tu­ação é fácil de de­mons­trar. É que o di­nheiro nem sai das em­presas, é ime­di­a­ta­mente des­viado para a banca.

Como se pode ver no Quadro 2, nestas 11 em­presas os juros cres­ceram mais de 135 mi­lhões de euros, ab­sor­vendo tudo o que foi rou­bado nos sa­lá­rios. Mas re­pare-se que as em­presas pú­blicas su­portam ainda ou­tros en­cargos fi­nan­ceiros além dos juros2, como é o caso da CP e do Metro de Lisboa que perdem mais de 100 mi­lhões de euros só nas va­ri­a­ções de justo valor.

Ou seja, tudo o que foi rou­bado aos tra­ba­lha­dores foi in­su­fi­ci­ente se­quer para co­brir o sim­ples acrés­cimo de des­pesas com juros, foi in­su­fi­ci­ente para aplacar se­quer a sede dos es­pe­cu­la­dores e dos ca­pi­ta­listas que pa­ra­sitam o sector.

Mas o pró­prio nú­mero global de 558 mi­lhões de euros pagos em juros por estas 11 em­presas (e mais umas cen­tenas de mi­lhões em re­du­ções do justo valor e afins) ilustra bem a ver­da­deira en­torse do país e das em­presas: a usura, as rendas que estão a ser pagas ao sector fi­nan­ceiro.

 

Um imenso roubo aos utentes

 

Mas no sector, não só aos tra­ba­lha­dores o Go­verno está a roubar. Os utentes foram igual­mente ví­timas de uma po­lí­tica que se cen­trou no au­mento de preços e na re­dução da oferta. Lem­bramos os bru­tais au­mentos de preços em 2011, que foram sempre su­pe­ri­ores a 20%, mas atin­giram para muitos utentes va­lores muito su­pe­ri­ores. Foi tal a bru­ta­li­dade que levou à perda de de­zenas de mi­lhões de pas­sa­geiros. Veja-se a va­ri­ação de pas­sa­geiros e de re­ceitas de trá­fego em 4 destas em­presas.

Mas os utentes não pa­garam apenas mais. Pa­garam por um pior ser­viço, pois as em­presas re­du­ziram sig­ni­fi­ca­ti­va­mente a oferta, cum­prindo as ori­en­ta­ções do Go­verno. E esta si­tu­ação de perda ace­le­rada de pas­sa­geiros ainda se agravou mais em 2012, como os re­centes dados do INE vem com­provar.

Estes roubos aos utentes foram também eles ape­li­dados de sa­cri­fí­cios. E também eles não cum­priram o pro­pó­sito para o qual foram anun­ci­ados. Desde logo, porque a re­ceita não au­mentou sig­ni­fi­ca­ti­va­mente e muito menos pro­por­ci­o­nal­mente aos bru­tais au­mentos re­a­li­zados. E porque o que foi rou­bado aos utentes, junto ao que foi rou­bado aos tra­ba­lha­dores con­tinua a ser menos do que o au­mento de juros pagos pelas em­presas, como se pode ver no Quadro 3.

 

Qual o ob­jec­tivo das me­didas?

 

Como de­mons­trámos, os cortes sa­la­riais foram ab­sor­vidos pelo au­mento de juros e apenas con­tri­buiram para au­mentar o dé­fi­cite do OE na me­dida em que se re­du­ziram as re­ceitas fis­cais e da Se­gu­rança So­cial3. No plano da eco­nomia, as im­pli­ca­ções do au­mento de custos para os utentes são de­sas­trosos e ali­mentam a re­cessão. Mas não es­tamos pe­rante uma po­lí­tica fa­lhada. Estas me­didas cum­priram e cum­prem o ri­go­roso papel para o qual foram de­se­nhadas.

Desde logo porque tirar ao tra­balho para en­tregar ao ca­pital é a razão de ser de todas as po­lí­ticas dos Go­vernos ao ser­viço do ca­pital. No caso das em­presas pú­blicas, que o Go­verno quer pri­va­tizar, os cortes sa­la­riais estão ainda a ser usados como amor­te­cedor da re­sis­tência dos tra­ba­lha­dores já que com a pri­va­ti­zação é pro­me­tido o fim destas me­didas. Veja-se o triste caso da SPDH onde os pró­prios sin­di­catos vendem a van­tagem desta ter sido pri­va­ti­zada pois em 2012 vão re­ceber os sub­sí­dios ao con­trá­rios dos res­tantes tra­ba­lha­dores do Grupo TAP ainda não pri­va­ti­zados!

Mas o re­sul­tado prin­cipal das po­lí­ticas de cortes im­postas pelo Go­verno dá-se no plano das em­presas pú­blicas de trans­portes ter­res­tres. E esse re­sul­tado foi a efec­tiva me­lhoria do seu re­sul­tado ope­ra­ci­onal apesar do agra­va­mento do seu re­sul­tado lí­quido.

Ou seja, as em­presas pú­blicas agra­varam as suas contas fi­nais como in­te­ressa a quem as quer pri­va­tizar «custe o que custar», o que não dei­xará de ser usado como ar­gu­mento e ins­tru­mento de pro­pa­ganda. E si­mul­ta­ne­a­mente a ex­plo­ração co­mer­cial, que é o único sector que vai ser pri­va­ti­zado, me­lhorou subs­tan­ci­al­mente os seus re­sul­tados.

Em­presas (ou Uni­dades) como o Me­tro­po­li­tano de Lisboa, a Carris, a CP Lisboa, a CP Porto e os STCP têm hoje re­sul­tados ope­ra­ci­o­nais fran­ca­mente po­si­tivos (até mais po­si­tivos do que as em­presas pri­vadas con­gé­neres). Estão em con­di­ções de ser pri­va­ti­zadas, de ser co­lo­cadas a gerar lu­cros para os ca­pi­ta­listas que delas se apro­pri­arem. E este é o único ob­jec­tivo do Go­verno e da troika.

O pró­ximo passo será fazer a dí­vida das em­presas re­gressar ao Or­ça­mento do Es­tado, ali­mentar nesse mo­vi­mento mais uma cam­panha contra o ca­rácter pú­blico das em­presas, e pri­va­tizar a ope­ração co­mer­cial trans­fe­rindo mi­lhões para os ca­pi­ta­listas e as mul­ti­na­ci­o­nais!

É ver­dade que o sa­ne­a­mento fi­nan­ceiro destas em­presas é ine­vi­tável. A sua dí­vida já se auto-ali­menta, ge­rando so­zinha en­cargos su­fi­ci­entes para ga­rantir ao ca­pital avul­tadas rendas anuais e o cres­ci­mento da dí­vida. E o Go­verno in­ter­virá no sen­tido de ga­rantir aos ca­pi­ta­listas que essa renda con­ti­nuará a ser paga (pelo Es­tado) ao mesmo tempo que en­trega novas rendas aos ca­pi­ta­lista por via da ex­plo­ração co­mer­cial do sector.

O que se exige, como o PCP vem há anos exi­gindo, é li­bertar o sector dos trans­portes de quem o pa­ra­sita cres­cen­te­mente.

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1 As em­presas cujas contas de 2011 são uti­li­zadas neste tra­balho são: Carris; ANA; Metro Porto; STCP; TAP; CP; NAV; Sata Air Açores; Sata In­ter­na­ci­onal; EMEF; Metro Lisboa.

2 Não se pode tratar sempre desta ma­téria, mas é pre­ciso aqui lem­brar a origem da dí­vida das em­presas pú­blicas de trans­portes – mais de 20 anos de de­sor­ça­men­tação do in­ves­ti­mento, su­bor­ça­men­tação das in­dem­ni­za­ções e ou­tros roubos pra­ti­cados pelos su­ces­sivos go­vernos. E su­gerir a (re)lei­tura do dos­sier sobre ela em http://​www.dorl.pcp.pt/​images/​Do­cu­men­tosPDF/​2011/​out/​con­tri­bu­tos­con­tra­as­pri­va­tiza%E7%F5es­trans­por­tes2011out28.pdf

3 E no caso da NAV até se tra­du­ziram numa re­dução das ex­por­ta­ções por via da re­dução das taxas de rota como já bastas vezes se ex­plicou ao Go­verno.



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