A manobra de diversão dos malefícios do tabaco

Nuno Gomes dos Santos

Diz-se que na an­tiga Pérsia, na África antes da che­gada dos cris­ti­a­nís­simos brancos, ou na Amé­rica onde vi­viam ín­dios a sua vi­dinha quando foram apa­nhados de sur­presa por uns tipos idos de longe, de tez pá­lida, e con­de­nados a fazer nascer um país des­res­pei­toso dos seus na­tu­rais, o ta­baco era já um de­lei­toso prazer e pa­na­ceia para va­ri­a­dís­simos males. Muito se pas­maram os na­ve­ga­dores, uns em busca de novos mundos, ou­tros obri­gados a pro­curá-los por terem sido es­cor­ra­çados do seu lugar de origem de­vido a prá­ticas menos pró­prias. Daí, vai de ex­pe­ri­mentar. Gos­taram. Assim se aliou o prazer ao usu­fruto me­di­cinal da planta que, de­pois de de­vi­da­mente pre­pa­rada, acen­tuava mo­mentos de re­flexão na roda das tribos ou na so­lidão dos de­va­neios de fi­lo­sofar a con­tento, con­so­ante nos qui­sermos re­ferir aos asiá­ticos, aos afri­canos ou aos ín­dios.

Era ine­vi­tável: des­co­brir mundos novos su­punha aprender novas prá­ticas, que nem só de es­pí­rito de missão, de resto sempre ul­tra­pas­sado pelo des­lumbre e se­quente avidez de ri­queza, ou de pos­tura de salve-se quem puder, agora nós ou a morte, vamos lá so­bre­viver seja como for, vi­viam estas des­vai­radas na­ve­ga­ções. A ideia, quando se deu de caras com na­tivos de língua opaca e de pouca ou ne­nhuma en­co­brição das partes, era en­sinar-lhes as coisas como deve ser. Porém, as ta­refas de en­si­na­mentos for­çados e contra na­tura, toma lá uma cruz e, com água e sal e umas pa­la­vri­nhas que não en­tendes, mas não im­porta, ficas como a gente (va­lesse-lhes Deus!), ti­nham, como era de supor, con­tra­par­tidas nunca dantes na­ve­gadas, se qui­sermos alargar a vi­agem à sur­presa da des­co­berta dos cos­tumes e prá­ticas au­tóc­tones. E veio o ta­baco para a Eu­ropa, no­vi­dade não só en­fer­meira mas ainda pra­zen­teira, assim se dando ao es­pí­rito o inalar do prazer e ao corpo a me­zinha da erva cu­ra­tiva. Não es­panta, por isso, que um tal Jean Nicot bap­ti­zasse tal folha de erva santa, cha­mando-lhe os seus pos­te­ri­ores ni­co­tina (toma lá a pos­te­ri­dade, Nicot), com a qual Ca­ta­rina de Mé­dicis foi am­pla­mente tra­tada de ma­leitas vá­rias.

De bes­tial a besta

Es­tava-se muito bem nisto, foi sendo co­mer­ci­a­li­zado o pro­duto como coisa lu­cra­tiva, diga-se que de di­nheiro ge­ne­roso ou de prazer as­su­mido, quando, em 1950, se des­co­briram os ma­le­fí­cios do ta­baco. Ofi­ci­al­mente, que Tchekhov já os de­nun­ciara, com humor, uns anos largos antes. Mas pronto: em 1962 o go­verno bri­tâ­nico de­cretou que se avi­sasse os fu­ma­dores dos tais ma­le­fí­cios e, daí até agora, co­meçou a cru­zada do não ao ta­baco. Com­pro­va­da­mente, o ta­baco faz mal à saúde, assim se dando razão à má­xima de que se passa de bes­tial a besta sem mais aquelas do que esta: fumar faz mal, ponto final.

Seria par­voíce pe­gada negar a evi­dência de tal afir­mação. Quem atri­buía ao ta­baco be­ne­fí­cios sa­lu­tares não es­tava pro­vido dos meios ca­pazes de pôr os pontos nos “ii” com­pro­vados no contra-in­ter­ro­ga­tório dos ac­tuais es­pe­ci­a­listas, que têm razão no alerta contra a fu­ma­rada ni­có­tica. Até aí, tudo bem. Falta, porém, esse rigor de Ha­mu­rabi a ou­tros alertas menos, di­gamos, po­pu­lares: contra o ex­cesso de gor­duras na co­mida, contra o abuso de be­bidas al­coó­licas, contra o se­den­ta­rismo, contra os so­ní­feros e se­da­tivos em de­masia, contra a ano­rexia, contra as cor­rentes de ar, contra a sub-ali­men­tação (aí fia mais fino, dada a in­có­moda atri­buição de cul­pa­bi­li­dades...), ou seja: contra todas as coisas que fazem mal à saúde e são tão mor­tí­feras como, mas menos per­se­guidas por lei, quem se atre­veria a proibir de­gus­ta­ções de leitão da Bair­rada com aquele mo­lhinho de pi­menta que se sabe, ou o ve­neno de ver­mutes ce­le­bri­zados por po­li­ciais que Hollywood imor­ta­lizou, para não falar do whisky de malte que, tanto quanto sa­bemos e com­pro­vámos ou­vindo, não fez mal ne­nhum à voz do Si­natra. Para não falar de uma frase can­tada e imortal para quem ouve mú­sica de valer a pena: «smoke gets in your eyes» (o fumo foi-te para os olhos). Porém, quando se passa do alerta à ce­gueira de uma in­vec­tiva hi­pó­crita, a coisa muda de fi­gura.

Este Go­verno que temos, dando im­pe­rial se­gui­mento a me­didas de ou­tros que o pre­ce­deram, quer proibir o con­sumo de ta­baco em todos os es­paços pú­blicos. Há uns anos, poucos, obrigou-se os donos desses es­paços, o mais deles de res­tau­ração, a de­li­mitar lu­gares para fu­ma­dores e não-fu­ma­dores. Um di­nheirão em apa­re­lhos apro­pri­ados, nin­guém com ra­zões de queixa, vou para ali que posso dar uma passa, sento-me acolá que estou livre de inalar, pas­si­va­mente, fu­ma­rentas doses de ni­co­tina. E faz disto ca­valo de ba­talha. Hi­po­cri­ta­mente. Porque: pri­meiro – a questão está lon­gís­simo de ser pri­o­ri­tária, já que não consta que haja uma mul­tidão a pro­testar contra os es­paços de­fi­nidos para pra­ti­cantes e não pra­ti­cantes; se­gundo – a res­tau­ração já foi lar­ga­mente pe­na­li­zada (o IVA que o diga) e já gastou muito di­nheiro para ter es­paços para quem fuma e quem não; ter­ceiro – quem in­dem­niza os donos de res­tau­rantes (e de ou­tros es­ta­be­le­ci­mentos) por terem gasto uma for­tuna para de­marcar lu­gares de fu­mantes e não fu­mantes, quando se ameaça que todos os es­paços serão para gente sem fumo nos há­bitos? Quarto – porque não se proíbe o em­borcar de vá­rios whiskys nas vi­a­gens de avião (al­gumas têm-se re­ve­lado pe­ri­gosas...) ou, li­mi­nar­mente, não se multam os pro­du­tores e ven­de­dores de sal, seja ele fino ou grosso, por via do co­les­terol? E por aí fora...

Fumo para os olhos

Longe de mim de­fender – e muito menos exaltar – o con­sumo do ta­baco. Porém, não posso deixar de me re­voltar contra quem quer pro­mulgar leis dra­co­ni­anas ata­cando o mal do fumo como quem tenta tapar o fumo com a pe­neira. Horas e horas a pensar, ras­cu­nhar, re­es­crever doutas sen­tenças le­gais contra o ta­baco, sa­bendo que essa é uma questão se­cun­dária, que deve ser dei­xada ao livre ar­bí­trio de quem con­some desde que res­peite quem não o faz. Assim vís­semos nós tão grande em­penho no com­bate às causas da po­breza, à im­pu­ni­dade da cor­rupção, ao com­pa­drio, ao de­sem­prego. Mas não. Estão, li­te­ral­mente, a atirar-nos fumo para os olhos. Claro que acham giro ter um poster na sala com uma ve­deta rock de ci­garro na boca, uma foto de Dias de Melo ou de David Mourão-Fer­reira de ca­chimbo entre dentes, de Che Gue­vara (pa­rece bem, dá uma imagem por­reira) de cha­ruto, pose que Chur­chill não dis­pen­sava e lá está ele, no ar­quivo das re­cor­da­ções, de ha­vano nas beiças e não com a pa­lhinha com que a me­di­o­cri­dade atrai­çoou o ge­nuíno Lucky Luke. De­certo, muitos deles fu­marão, o seu ci­garro (pelo menos...) com a des­culpa de olha para o que eu digo, não li­gues ao que eu faço.

Direi o que me re­co­menda a razão: me­lhor será não fumar. Mas com­bater proi­bindo não é jo­gada cre­dível a favor dos ar­gu­mentos da proi­bição.

Me­lhor seria dar ou­vidos ao que disse, a pro­pó­sito, o ac­tual bas­to­nário da Ordem dos Mé­dicos: nunca ne­nhum fun­da­men­ta­lismo re­solveu qual­quer pro­blema.



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