A fonte dos recados

Correia da Fonseca

Houve um tempo já dis­tante em que muito se re­petia que a te­le­visão era uma «ja­nela para o mundo». De então para cá os anos des­li­zaram, e de­pressa pelo menos os mais atentos se aper­ce­beram de que a su­posta ja­nela que a te­le­visão seria es­tava longe de se abrir sobre o mundo largo e di­verso mas, pelo con­trário, dele só nos per­mitia olhar nesgas cui­da­do­sa­mente es­co­lhidas. E acon­tece que dessas nesgas e da forma como elas nos são dadas a ver re­sulta um con­junto de re­cados que se vão ins­ta­lando nas ca­be­ci­nhas de quem quo­ti­di­a­na­mente olha o ecrã do seu te­le­visor e nele se vai in­for­mando, ou julga que sim. Ligue-se hoje mesmo um te­le­visor e não será di­fícil iden­ti­ficar al­guns dos re­cados de que ele é por­tador. Por exemplo: quanto ao nosso País, que é pre­ciso re­cu­sarmos a ilusão de que há mais vida para além da ne­ces­si­dade de su­por­tarmos os «sa­cri­fí­cios» que o Go­verno nos impõe (sem pre­juízo do di­reito a ma­ni­fes­ta­ções de pro­testo e de­sa­grado, desde que não se passe daí); no plano in­ter­na­ci­onal, que o mais im­por­tante e ur­gente é o der­rube do ac­tual pre­si­dente da Síria e a sua subs­ti­tuição por um amigo do Oci­dente. Assim se vai cons­truindo na cha­mada opi­nião pú­blica uma ideia do mundo e da vida que mantém as gentes te­les­pec­ta­doras, isto é, a ge­ne­ra­li­dade dos ci­da­dãos, talvez in­quieta mas sub­missa, con­for­mada com a má sorte que ca­lhou a quase todos mas não a al­guns. Como anal­gé­sicos ou pa­li­a­tivos, a te­le­visão, des­ve­lada, vai for­ne­cendo doses ro­bustas de fu­tebol como tema de re­fle­xões in­te­lec­tuais, de pro­gramas de humor desde que ten­den­ci­al­mente im­becil, de es­tó­rias de faz-de-conta que podem emo­ci­onar te­les­pec­ta­doras sen­sí­veis mas que não es­ti­mulam nin­guém a pensar em coisas sé­rias e ve­rí­dicas. Como se diria adap­tando um velho es­tri­bilho pu­bli­ci­tário, a te­le­visão en­gana mas não se en­gana quanto ao que pre­tende que se­jamos, que pen­semos. Ou mais exac­ta­mente: quem não se en­gana são os que da te­le­visão fazem ins­tru­mento ao ser­viço dos seus pró­prios ob­jec­tivos.

Um con­vite à de­sis­tência

Nada disto é no­vi­dade para quem se ha­bi­tuou não apenas a ver te­le­visão, mas também a re­flectir acerca do que nela viu e ouviu. Porém, a uma es­cala menor, surge como no­vi­dade um novo re­cado que a te­le­visão tem vindo a dar em dias re­centes, num ou outro canal até com uma in­sis­tência de­certo sig­ni­fi­ca­tiva: trata-se de in­formar cada um de nós, isto é, o povão in­di­fe­ren­ciado que nos úl­timos tempos tem re­ve­lado ten­dên­cias para re­cal­ci­trar, de que isso do cha­mado «Es­tado so­cial» é coisa in­sus­ten­tável, utopia des­vai­rada nas­cida de­certo de dou­trinas con­de­ná­veis e aliás con­de­nadas, pelo que o mais sen­sato será tirar daí o sen­tido. O aviso é feito, já se vê, para nosso bem, para que sem sur­presas nos ha­bi­tu­emos à ideia de que viver na po­breza sem re­médio, na do­ença sem apoios, no de­sem­prego sem ajudas, na ve­lhice sem am­paros, é o nosso ine­vi­tável des­tino, e para dar ro­bustez a este re­cado estão a ser con­vo­cados o peso de es­tudos so­ci­o­ló­gicos já em curso, aliás muito bem pa­tro­ci­nados, e a au­to­ri­dade de re­pu­tados so­ció­logos ou equi­pa­rados. Trata-se, assim, de usar a TV para se­mear a con­for­mada re­núncia dos ci­da­dãos à luta por di­reitos não apenas cus­to­sa­mente ad­qui­ridos, o que já seria im­por­tante, mas também e so­bre­tudo ins­critos no in­vi­sível mas fun­da­mental es­ta­tuto da dig­ni­dade hu­mana. É uma se­men­teira que, na mais que pro­vável ex­pec­ta­tiva dos que a or­denam, há-de flo­rescer em tran­qui­li­dade para si pró­prios, pois é na­tural que por agora se sintam in­co­mo­dados pelas acu­sa­ções de in­fâmia que contra eles são lan­çados e, mais ainda, por uma per­cepção que por vezes os vi­sita: a de que, do fundo dos tempos, uma voz en­sina que nunca um do­mínio in­fame durou muito. É, pois, um da­queles muitos re­cados sem prin­cí­pios mas com fins de que a te­le­visão se tornou fonte, e é uma se­men­teira para de­nun­ciar e neu­tra­lizar. Porque não se trata apenas de con­testar que a con­de­nação à morte do «Es­tado so­cial» seja uma sen­tença sem apelo pos­sível: é, bem mais que isso, lem­brar a cer­teza de que a cons­trução de so­ci­e­dades mais justas é desde sempre o ca­minho que os ho­mens vêm per­cor­rendo. E, em cada etapa, sempre com êxito final.



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