clube: relação do económico com o social

A. Melo de Carvalho

A aná­lise do clube des­por­tivo tem sido, entre nós, sin­gu­lar­mente «des­cen­trada»: na re­a­li­dade o que se diz sobre a trans­for­mação do clube obe­dece, com frequência, aos in­te­resses de quem emite a opi­nião, em lugar de partir de um es­tudo cui­da­doso que tome em con­si­de­ração as di­fe­renças es­pe­cí­ficas exis­tentes entre os vá­rios tipos de clube, as mo­ti­va­ções de quem os ori­enta e gere, e as ne­ces­si­dades a que deve for­necer res­posta.

O clube des­por­tivo é, antes de tudo, uma «as­so­ci­ação» e é no quadro e do ponto de vista do as­so­ci­a­ti­vismo que esta aná­lise, deve ser re­a­li­zada, e não de qual­quer outro (es­pe­ci­al­mente do eco­nó­mico). Em prin­cípio a as­so­ci­ação é in­de­pen­dente da posse de qual­quer tipo de bens. As­sente na con­ju­gação de es­forços e ca­pa­ci­dades co­muns, tem como ob­jec­tivo ex­clu­sivo par­ti­lhar os be­ne­fí­cios re­sul­tantes dessa acção.

Esta de­fi­nição, de ca­rácter abran­gente, re­sulta, antes de tudo, em nossa opi­nião, da dou­trina Rous­se­au­niana e En­ci­clo­pe­dista da Re­vo­lução Fran­cesa. De qual­quer forma, o que está em causa é a mais com­pleta li­ber­dade in­di­vi­dual para o grupo de ci­da­dãos se cons­ti­tuir numa as­so­ci­ação. Ou seja, trata-se da li­ber­dade do as­so­ci­a­ti­vismo que, du­rante anos foi im­pos­sível viver no nosso País.

Li­ber­dade, acção comum e de­sin­te­resse ma­te­rial no tra­balho re­a­li­zado. Pode dizer-se que, na sua versão his­tó­rica mais pura, o clube cons­titui uma «so­ci­e­dade» que ex­clui ex­pli­ci­ta­mente toda a acu­mu­lação de ri­queza e se cons­titui como uma as­so­ci­ação de pes­soas. Mas, de qual­quer forma, não é pos­sível deixar de con­si­derar ao falar de li­ber­dade, que o clube re­sulta de um com­pro­misso entre pes­soas e as­sume, por isso, a forma de um con­trato.

Ora, o ca­rácter deste con­trato, e as pró­prias ca­rac­te­rís­ticas es­sen­ciais da as­so­ci­ação não dei­xaram nunca de pre­o­cupar os go­vernos e todo o poder po­lí­tico. A ver­dade é que os clubes vei­culam, de forma mais ou menos im­plí­cita, um modo de­ter­mi­nado de con­si­derar «o so­cial», ou pelo menos, de di­fundir certas con­cep­ções com um ou outro sinal.

Ao longo da his­tória até os re­gimes po­lí­ticos mais li­be­rais he­si­taram, muitas vezes, em re­co­nhecer a li­ber­dade de as­so­ci­ação sem qual­quer re­serva. Com frequência (esta co­loca-se numa ati­tude de «as­so­ci­ação contra-poder»), fun­ci­o­nando como es­tru­tura al­ter­na­tiva para os ci­da­dãos ex­pres­sarem as suas opi­niões e le­varem à prá­tica di­fe­rentes tipos de ações. Não foi por acaso que du­rante a vi­gência do fas­cismo, em Por­tugal, os clubes des­por­tivos viram a sua ação li­mi­tada, pois os seus es­ta­tutos de­viam obe­decer a re­gras es­tritas e as di­rec­ções ti­nham de ser apro­vadas pelo Mi­nis­tério do In­te­rior (pas­sando pre­vi­a­mente pelas su­ces­sivas di­fe­rentes PIDES).

A pouco e pouco tornou-se in­dis­pen­sável pro­curar e en­con­trar novas formas de fun­ci­o­na­mento e uti­lizar novos meios hu­manos, eco­nó­micos e téc­nicos. A sua or­ga­ni­zação foi, desta forma, evo­luindo, apro­xi­mando-se, len­ta­mente das ca­rac­te­rís­ticas de uma em­presa, es­pe­ci­al­mente quando as suas pre­o­cu­pa­ções ca­mi­nharam na di­recção da «vi­tória a todo o custo». Nessa al­tura a sua fi­na­li­dade di­ver­si­ficou-se, assim como a na­tu­reza do seu ob­jecto.

Ini­ci­al­mente pre­o­cu­pado com fi­na­li­dades hu­ma­nístas e so­ciais, o clube, para além do seu ca­rácter cul­tural, pro­fis­si­onal, re­li­gioso e po­lí­tico, evo­luiu nou­tras di­rec­ções res­pon­dendo a novas ne­ces­si­dades so­ciais. De sim­ples as­so­ci­ação de pes­soas, passou a agrupar também bens e ser­viços cada vez mais im­por­tantes.

O clube des­por­tivo cons­titui um bom exemplo desta evo­lução, tendo vi­vido e vi­vendo ainda, esta pro­ble­má­tica. Torna-se, assim, in­dis­pen­sável tomar em con­si­de­ração a pró­pria evo­lução do des­porto. O pro­cesso de di­fe­ren­ci­ação entre os clubes acen­tuou-se com a seg­men­tação do des­porto em sec­tores es­pe­cí­ficos e a mul­ti­po­la­ri­zação das es­tru­turas da sua or­ga­ni­zação.

Con­tudo, en­ca­rada a questão do ân­gulo oposto, ou seja, do ponto de vista eco­nó­mico, o clube é a única es­tru­tura so­cial que per­mite re­la­ci­onar in­ti­ma­mente, no seio de uma mesma or­ga­ni­zação, o eco­nó­mico com o so­cial. É esta re­lação que fa­ci­lita o apa­re­ci­mento de muita con­fusão.

Na ver­dade, é in­dis­pen­sável não agrupar os clubes num todo uni­forme e deixar de lado o em­prego le­viano do termo «em­presa» quando apli­cado à as­so­ci­ação. Na ver­dade, nada au­to­riza a que, pelo facto do le­gis­lador ter for­ne­cido ao clube um quadro legal que lhe pos­si­bi­lita obter os meios in­dis­pen­sá­veis à pros­se­cução do seu ob­jecto pró­prio, a de­sig­nação «em­presa» seja apli­cada aqui, com con­tornos con­tra­di­tó­rios e ina­de­quados e in­de­fi­nidos. De facto, con­funde-se a in­dis­pen­sável trans­for­mação dos pro­cessos de mu­dança dentro do clube (que im­plicam novas téc­nicas, entre elas al­gumas de raiz em­pre­sa­rial) com uma trans­for­mação eco­nó­mica es­pe­cí­fica com a qual não par­tilha nem in­ten­ções, nem fi­na­li­dades.

 



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