Cortes, conselhos, enganos

Correia da Fonseca

Mesmo sem que se tra­balhe com re­gistos mi­nu­ci­osos, con­ta­gens de tempos, dis­tri­buição es­ta­tís­tica por ten­dên­cias das di­versas in­ter­ven­ções dos es­pe­ci­a­listas reais ou su­postos que fre­quentam os di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa, pa­rece pos­sível e até fácil aper­ce­bermo-nos de uma certa in­versão acon­te­cida nas úl­timas se­manas. Ainda não há muito tempo, a mai­oria das vozes que ali dis­cor­riam acerca da Crise, das as­sus­ta­doras di­fi­cul­dades fi­nan­ceiras que o País en­frenta, do que há a fazer para obe­decer às vozes de co­mando que nos chegam de Berlim ou de Bru­xelas, apoiava o Go­verno que há já ano e meio anda a des­graçar os por­tu­gueses e não tinha dú­vidas quanto à jus­teza da po­lí­tica do «custe o que custar», isto é, de obe­di­ência cega, por ele im­posta. Porém, nos úl­timos tempos ou talvez apenas nos úl­timos dias, esse tom al­terou-se: as vozes dis­cor­dantes da bru­ta­li­dade go­ver­na­tiva cres­ceram em nú­mero, pas­sámos a ver e a ouvir fi­guras que poucas vezes ou mesmo nunca víamos nos nossos te­le­vi­sores. Uma si­tu­ação con­creta é a que tem a ver com a even­tual saída de Por­tugal da zona do euro, com re­gresso a uma moeda na­ci­onal. Até há pouco, só João Fer­reira do Amaral vinha à te­le­visão pre­co­nizar esse mo­vi­mento e sus­tentar que a adesão por­tu­guesa ao euro havia sido um erro (sem que, na­tu­ral­mente, al­guém ti­vesse uma pa­lavra para lem­brar a opo­sição de sempre a essa adesão por parte do PCP e de pres­ti­gi­ados eco­no­mistas co­mu­nistas). Agora, deixou de ser raro haver quem con­temple essa even­tu­a­li­dade como de­se­jável, por­ven­tura até como ine­vi­tável, em­bora não dei­xando de re­co­nhecer o alto preço que o País, isto é, o povo, terá de pagar por tal saída. Esta mu­tação nos elencos con­vi­dados para os pro­gramas de aná­lise e de­bate pode cor­res­ponder ou não ao de­sejo das es­ta­ções «ca­val­garem» desde já a pre­vi­sível der­ro­cada deste Go­verno (como se vê, dou-me ao luxo de uti­lizar aqui uma ex­pressão me­ta­fó­rica de origem hí­pica que se tornou moda aliás cu­riosa), mas de qual­quer modo lembra de­sa­gra­da­vel­mente a velha imagem dos ratos que aban­donam o navio que se afunda, em­bora neste caso sem vi­sível pâ­nico, antes com a sa­be­doria de ex­pe­ri­entes pro­fis­si­o­nais de tais ma­no­bras (e aqui fica, não exac­ta­mente por acaso, uma outra me­tá­fora, esta já com largos tempos de uso).

Saber o que está dentro

En­tre­tanto, tem o Go­verno entre mãos a obri­gação de fa­bricar um or­ça­mento para 2013 que res­peite ou finja res­peitar o dé­fice agora au­to­ri­zado pela troika. Pe­rante as já apu­radas con­sequên­cias de­sas­trosas e con­tra­pro­du­centes do agra­va­mento dos im­postos lan­çados sobre o povo, de­sig­na­da­mente o IRS e o IVA que in­cide sobre bens de ne­ces­si­dade bá­sica, havia que re­pensar o as­sunto. E, é claro, logo sur­giram re­pen­sa­dores de for­mato ade­quado ao que é pre­ciso, isto é, aos su­pe­ri­ores in­te­resses não do País, mas dos ex­tractos de topo da classe do­mi­nante. Ou­vimos al­guns deles na TV: em re­sumo, pre­co­nizam a re­jeição de even­tuais im­postos sobre os que mais têm e re­clamam cortes na «des­pesa do Es­tado» É, já se vê, um desses al­vi­tres que é pre­ciso abrir para saber o que tem dentro: quando se fala em «des­pesa do Es­tado» do que é que es­tamos a falar? Poder-se-á pensar, so­bre­tudo se formos in­gé­nuos e des­pre­ve­nidos, que se está a falar das re­mu­ne­ra­ções dos de­pu­tados su­pos­ta­mente em nú­mero ex­ces­sivo (e essa su­po­sição é logro e ar­ma­dilha que a seu tempo te­remos talvez de des­montar), da le­gião­zinha de jo­vens as­ses­sores que se ins­ta­laram nos mi­nis­té­rios, destes ou ou­tros custos equi­pa­rá­veis. Mas não nos dei­xemos en­ganar: as «des­pesas do Es­tado» de di­mensão bas­tante para que o seu corte seja eficaz para a re­dução do dé­fice terão di­rec­ta­mente a ver com o tra­ta­mento das do­enças que nos as­saltem, com a ne­ces­si­dade de nos trans­por­tarmos até aos nossos em­pregos, com a ins­trução e a edu­cação dos nossos fi­lhos, com coisas assim. Na ver­dade, sempre os pro­jectos de cortes na «des­pesa do Es­tado» visam de facto mais am­pu­ta­ções nos di­reitos re­co­nhe­cidos aos ci­da­dãos em so­ci­e­dade ci­vi­li­zada. Pelo que é pre­ciso que os ci­da­dãos te­les­pec­ta­dores se dêem in­teira conta do con­tra­bando dis­si­mu­lado nas pa­la­vras desses pe­ritos. Pelo que é pre­ciso, como sempre em si­tu­a­ções destas, or­ga­nizar a re­sis­tência.



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