O «novo» clube: a invasão do social pelo económico

A. Melo de Carvalho

O facto do clube se trans­formar numa em­presa não porá em causa prin­cí­pios es­sen­ciais do as­so­ci­a­ti­vismo, ou seja, a le­gis­lação por que se passa a reger não pre­ju­di­cará a li­ber­dade da as­so­ci­ação? O con­trolo que, nessa al­tura, se deve passar a exercer através dos po­deres pú­blicos, pres­supõe uma re­gu­la­men­tação que, evi­den­te­mente, põe em risco o prin­cípio da li­ber­dade de as­so­ci­ação, tal como re­sultou da le­gis­lação pos­te­rior ao 25 de Abril e é, tra­di­ci­o­nal­mente, con­ce­bida e pra­ti­cada pelo Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo. De facto, se o clube se apro­xima, cada vez mais, da em­presa é de­vido à von­tade de ga­rantir a in­vasão do «so­cial» pelo «eco­nó­mico».

De uma forma ex­plí­cita, e à pri­meira vista in­ge­nu­a­mente jus­ti­fi­cada, o que se ar­gu­menta é que o in­di­víduo deve par­ti­cipar (?) no pró­prio fi­nan­ci­a­mento das ac­ti­vi­dades a que se de­dica, e o clube deve con­se­guir por si mesmo obter fontes de fi­nan­ci­a­mento ca­pazes de ga­rantir a sua so­bre­vi­vência. Isto de­vido a um duplo prin­cípio de «jus­tiça so­cial»: por um lado, re­cusa-se a uti­li­zação do fi­nan­ci­a­mento pú­blico pois viria a be­ne­fi­ciar dele aquele que menos pre­cisa (na me­dida em que tem ca­pa­ci­dade eco­nó­mica para poder su­portar os custos reais da ac­ti­vi­dade), por outro, porque sendo o nú­mero de pra­ti­cantes des­por­tivos muito baixo, se­riam aqueles que menos pra­ticam (as ca­madas so­ciais mais des­pro­te­gidas) a pagar os custos de uma prá­tica eli­tista.

Esta ar­gu­men­tação cons­titui um dos mais graves so­fismas que o ne­o­li­be­ra­lismo uti­liza como ar­gu­mento. Nada é mais in­justo do que uma igual­dade que não tome em con­si­de­ração as «de­si­gual­dades» e, por outro lado, é claro que se os clubes não são apoi­ados só as ca­madas com maior ca­pa­ci­dade eco­nó­mica da po­pu­lação podem ter acesso às ac­ti­vi­dades. Assim a ex­clusão so­cial e a se­gre­gação so­cial so­frem um novo agra­va­mento e só podem so­bre­viver os clubes fre­quen­tados por quem tem meios para cus­tear prá­ticas de alta qua­li­dade ou aqueles que se de­dicam ao es­pec­tá­culo des­por­tivo. Os ou­tros devem de­sa­pa­recer porque cons­ti­tuem es­tru­turas ob­so­letas.

De qual­quer forma, se se pre­tender que a as­so­ci­ação cons­titua os seus pró­prios fundos, ou obter formas de cré­dito ou de em­prés­timo, é evi­dente que se torna in­dis­pen­sável for­necer ga­ran­tias fi­nan­ceiras ao em­pres­tador. Na­tu­ral­mente, nestas con­di­ções, o re­gisto do clube como em­presa é in­dis­pen­sável, a não ser que esta pres­cinda das ga­ran­tias de ren­di­bi­li­dade su­fi­ci­ente do clube.

Na si­tu­ação ac­tual, uns de­fen­dendo a pura e sim­ples trans­for­mação do clube em em­presa, ou­tros ar­gu­men­tando que só a «parte» pro­fis­si­onal da as­so­ci­ação de­veria ser ob­jecto dessa mu­dança, di­vi­dindo o clube em dois, será in­dis­pen­sável que a as­so­ci­ação se su­jeite não só ao re­gisto no co­mércio, como também se tem de sub­meter ao con­trolo que é exer­cido sobre todas as em­presas. No es­pí­rito de al­guns, esta é a evo­lução ine­vi­tável para o clube des­por­tivo em todas as suas si­tu­a­ções.

Ora, a esta pers­pec­tiva nada se pode opor quando se trata do clube to­tal­mente pro­fis­si­o­na­li­zado, de­di­cado ao es­pec­tá­culo des­por­tivo, e em que as mo­da­li­dades ama­doras são apre­sen­tadas como um sim­ples ser­viço, cujos custos devem ser pagos pelos seus fre­quen­ta­dores. Será mesmo in­justo e in­cor­recto que a estas «novas em­presas» não sejam apli­cadas as re­gras pelas quais as ou­tras se devem reger, e que se des­tinam a pro­teger ter­ceiros.

O que é um facto é que, nestes casos, o clube passa ime­di­a­ta­mente a in­te­ressar quer aos po­lí­ticos (so­bre­tudo em pe­ríodo elei­toral), quer os ho­mens de ne­gócio que «ofe­recem» os seus «ser­viços» (em es­pe­cial os cons­tru­tores civis e os ho­mens da banca). Os pró­prios ser­viços pú­blicos olham esta questão como uma com­pla­cência ines­pe­rada, des­mul­ti­pli­cando a sua acção neste campo. Mesmo ao nível local, uma ou outra destas ati­tudes ma­ni­festa-se, em es­pe­cial, sempre que a di­recção de dado clube de­seja pro­jectar al­guma das suas equipas na «ri­balta» do des­porto pro­fis­si­onal na­ci­onal ou re­gi­onal. Basta tomar na de­vida conta o que se passou du­rante o ano de 1997 com o «to­to­ne­gócio», para se ver até que ponto esta ati­tude des­ra­zoável, pro­tec­ci­o­nista, in­ter­ven­ci­o­nista e /ou sub­ser­vi­ente, de tudo isto um pouco em quase todos os casos, mas sempre to­mando o des­porto como ob­jecto de pro­moção po­lí­tica, in­vadiu e tomou conta da men­ta­li­dade dos di­ri­gentes.

Nada disto pre­tende negar a im­por­tância so­cial e po­lí­tica do clube com ac­ti­vi­dade pro­fis­si­onal e, muito menos, o papel que o fu­tebol de­sem­penha, cada vez mais for­te­mente, na so­ci­e­dade. A va­lo­ri­zação de um e de outro é as­pecto in­so­fis­mável, mas o que con­si­de­ramos aber­rante e ina­cei­tável é que estas novas «em­presas» exijam pos­suir um es­ta­tuto es­pe­cial e não aceitem reger-se pelas mesmas normas que de­ter­minam a vida e a ati­vi­dade de todas aquelas que foram cri­adas para obter lucro.

 



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