Os impunes

Correia da Fonseca

A te­le­visão traz-nos duas no­tí­cias de algum modo con­ver­gentes entre si. Uma delas diz-nos da ab­sol­vição pelo Tri­bunal In­ter­na­ci­onal de Haia de dois ge­ne­rais cro­atas acu­sados de crimes de guerra du­rante os con­flitos bal­câ­nicos ha­vidos na sequência do es­quar­te­ja­mento da Ju­gos­lávia de­sen­ca­deado a partir do re­co­nhe­ci­mento uni­la­teral pela Ale­manha da Croácia como Es­tado in­de­pen­dente. Afinal, os po­bres es­tavam ino­centes, os únicos au­tores de crimes de guerra co­me­tidos du­rante as guerras acon­te­cidas nos Balcãs na pri­meira me­tade da dé­cada de 90 foram os sér­vios, o que aliás já se de­pre­endia fa­cil­mente de su­ces­sivas sen­tenças do re­fe­rido tri­bunal. A outra das no­tí­cias re­cen­te­mente tra­zidas pela TV re­fere-se à agu­di­zação dos en­dé­micos con­frontos entre pa­les­ti­ni­anos e is­ra­e­litas, agra­va­mento ocor­rido na sequência da morte de um alto di­ri­gente mi­litar dos pa­les­ti­ni­anos, ví­tima de mais um caso de pre­me­di­tado as­sas­sínio po­lí­tico que, como sabe quem queira sabê-lo, é um mé­todo muito das tra­di­ções de Is­rael. Nos dias pos­te­ri­ores, a te­le­visão e ou­tros media fa­laram-nos muito de mís­seis lan­çados contra Is­rael a partir da Faixa de Gaza, mas poucas ou ne­nhumas vezes se deram ao tra­balho de nos lem­brarem que esses lan­ça­mentos, de resto ine­fi­cazes em con­fronto com a ca­pa­ci­dade des­tru­tiva dos ata­ques is­ra­e­litas, cons­ti­tuíram a res­posta pos­sível dos pa­les­ti­ni­anos ao as­sas­sínio ha­vido. Com­ple­men­tar­mente, chegam no­tí­cias in­di­ci­a­doras da pre­pa­ração de um ataque ter­restre de Is­rael contra Gaza, sendo certo que a sua ca­pa­ci­dade bé­lica, que se­gu­ra­mente não caiu dos céus aos tram­bo­lhões por su­pe­rior de­cisão de Jeová em favor do seu Povo Eleito, po­derá torná-lo li­te­ral­mente es­ma­gador.

O es­pelho en­ga­noso

Quem acom­panhe com atenção ainda que mí­nima estas duas no­tí­cias, como aliás muitas ou­tras que ao longo dos tempos a te­le­visão in­jecta nas nossas ca­be­ci­nhas, tem opor­tu­ni­dade de con­firmar o que de resto há muito terá apren­dido: que neste mundo dito uni­polar há quem nunca seja res­pon­sa­bi­li­zado seja pelo que for porque goza de um per­ma­nente ve­re­dicto de «não cul­pado». Não é pre­ciso pes­quisar muito para saber que os con­flitos bal­câ­nicos ate­ados pelos in­te­resses ger­mano-norte-ame­ri­canos com des­ca­rada in­ter­venção da NATO, essa cu­ri­o­sís­sima or­ga­ni­zação mi­litar des­ti­nada a fun­ci­onar como a mão eu­ro­peia da es­tra­tégia USA para este con­ti­nente, sus­citou uma ex­plosão de ódios ra­cistas e na­ci­o­na­listas como já não era es­pe­rado ver na Eu­ropa. De resto, talvez também con­venha re­cordar que a Croácia foi, du­rante a Se­gunda Grande Guerra, te­atro de bar­ba­ri­dades de ex­trema sel­va­jaria per­pe­tradas por grupos lo­cais, tendo-lhes sido atri­buída a morte por es­pan­ca­mento do es­critor ca­tó­lico francês An­toine de Saint-Éxu­péry, então pi­loto de um avião de re­co­nhe­ci­mento que des­gra­ça­da­mente caiu em ter­ri­tório croata. Quanto ao Es­tado de Is­rael, é sa­bido que tem um ex­ten­sís­simo ca­dastro de bru­ta­li­dades, abusos de vária ordem, vi­o­la­ções de um pu­nhadão de re­so­lu­ções da ONU, para além da ile­ga­li­dade ini­cial e fun­da­mental de ter sido im­posto em terras alheias pela von­tade de po­tên­cias co­lo­ni­a­listas, um pouco como um tumor im­plan­tado em carnes sub­me­tidas e des­ti­nado a crescer e mul­ti­plicar-se, como se diria em es­tilo quase bí­blico. Mas não há nada a fazer, pelos vistos: sempre os cro­atas serão ino­cen­tados e sempre os sér­vios serão con­de­nados, talvez não pelos crimes cons­tantes dos do­cu­mentos acu­sa­tó­rios mas se­gu­ra­mente pelo crime sem perdão de um dia terem so­nhado com uma so­ci­e­dade não ca­pi­ta­lista e terem acei­tado o apoio da União So­vié­tica até certa al­tura, da Rússia de­pois da des­truição da URSS; sempre os pa­les­ti­ni­anos serão con­de­nados pelo crime de tei­marem em re­sistir ao roubo das terras que são suas há sé­culos e de que­rerem ver re­co­nhe­cido e res­pei­tado o Es­tado a que têm di­reito. Quanto a cro­atas e is­ra­e­litas, podem estar des­can­sados: nunca serão pu­nidos pelo que façam ainda que os seus crimes sejam evi­dentes porque os co­metem ao de­mo­cra­tís­simo abrigo das asas da águia ame­ri­cana. Até um dia, na­tu­ral­mente. Pois já vi­sí­veis fendas e po­dri­dões anun­ciam uma fra­go­rosa der­ro­cada do poder que, ins­ta­lado em Washington, se olha no es­pelho e ainda se vê como dono do mundo.

 



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