Libelo acusatório
Noite de Reis. A televisão transmite mais uma reportagem de refeição servida não só a pobres já antigos nessa sua condição mas também aos «novos pobres», segundo nos informa a voz off que serve de ajuda aos nossos olhos. Os «novos pobres» são uma inovação devida sobretudo a este último ano e meio de «austeridade» de cujo êxito a reportagem dá testemunho: claramente se percebe que os que pelo menos naquela noite se sentam diante das bancadas onde a refeição é servida estão de facto a viver de acordo com as suas possibilidades. É claro que em lugares distantes, ou talvez até fisicamente próximos, outros estarão sentados diante de melhores mesas para se servirem de melhores ceias, mas é óbvio que também esses estão a viver de acordo com as suas possibilidades, que são muito boas graças aos céus e sobretudo graças ao modelo de sociedade em que uns e outros vivem. Voltemos, porém, à reportagem que a TV nos oferece e que em tempos próximos pode muito bem ser a última no género, pois reportagens de ceias generosamente servidas a pobres antigos ou novos são frequentes no período do Natal e arredores mas raras noutras alturas. A abordagem pelo repórter de um licenciado em engenharia que foi recentemente despedido pode impressionar especialmente os telespectadores da classe média alta. A passagem para um outro comensal que exibe características mais próximas da mendicidade parecerá menos chocante a muita gente: afinal sempre haverá ricos e pobres, uns e outros nos seus respectivos lugares, e os comunistas é que andam a repetir que essa tão antiga e tradicional situação pode acabar, mas há-de ser só para desinquietar as gentes. O caso é que, tanto quanto a memória alcança, sempre houve os meigamente chamados «pobrezinhos», e tão úteis são eles que não só permitem a revelação pública de almas caridosas que o são por vontade própria, isto é, sem que nada as obrigue a sê-lo (de onde a merecida recompensa além-tumular que as aguarda), como até são aproveitados uma vez em cada ano para uma cerimónia religiosa prenhe de significado de onde doze deles saem com os pés lavados, vantagem que não é de desdenhar.
Um extenso rol
Mas o previsível desaparecimento total ou parcial de telenotícias de refeições servidas a portugueses de várias idades e condições, mas todos com fome, não esgotará decerto a informação televisiva acerca do que está a ser feito ao povo português. Creio, com razão ou sem ela, que houve um tempo em que os noticiários e seus complementos se esquivavam a falar-nos de gente sem recursos, de cidadãos que perderam a sua casa, de pais desesperados perante o mau passadio dos filhos, de coisas assim. Talvez os responsáveis pelos sectores de informação das três operadoras portuguesas de TV não quisessem então contribuir com notícias negras para uma eventual depressão dos ainda não tocados pela desgraça, talvez não quisessem incorrer no desagrado dos círculos governantes e suas extensões nos media, talvez apenas achassem mais adequado prosseguir exclusivamente na quase sagrada trilogia «desastre, escândalo, intriga» que era o cimento armado da construção dos seus noticiários. Mas isso mudou porque a realidade levou a melhor sobre a voluntária escassez de visão, e agora o telespectador de noticiários é diariamente confrontado com pedaços da actual verdade portuguesa: um povo brutalizado por uma clique comandada pelo estrangeiro, a notícia diária de doentes que não podem aceder a médicos e medicamentos, os desempregados cujo apoio estatal foi reduzido para a dimensão de uma esmola de valor indignante e muito breve duração, os reformados esbulhados das verdadeiras economias que fizeram ao longo de décadas sob a forma de descontos obrigatórios, o êxodo maciço de milhares de jovens cuja excelente preparação científica e técnica foi paga pelos que cá ficam, um extenso rol de crimes cometidos contra o povo e os seus direitos infamemente crismados de «regalias» pelos assaltantes e seus acólitos. Tudo isto e muito mais configurando um libelo de acusação não menos esmagador apenas porque os autores dos crimes se supõem irresponsabilizáveis. No que podem estar certos. Ou não.