Os espectros e a História da Humanidade (conclusão)

Sérgio Ribeiro
Aquestão da ter­mi­no­logia e do seu rigor não é des­pi­ci­enda, mas não pode es­conder (ou per­turbar) a con­fir­mação da exis­tência de uma lei como a da queda ten­den­cial da taxa de lucro e os es­forços para a con­tra­riar. Antes de tudo, na­tu­ral­mente, as pri­meiras «causas con­tra­ri­antes» são a «ele­vação do grau de ex­plo­ração» e a «com­pressão do sa­lário para baixo do seu valor» porque são in­trín­secas ao modo de pro­dução e à for­mação so­cial, ao ca­pi­ta­lismo, agra­vando a ex­plo­ração, ba­seada na­quilo em que (como já se re­feriu) «re­pousa toda a com­pre­ensão» do im­pres­cin­dível con­tri­buto de Marx.
Mas essas «causas con­tra­ri­antes» – que se tra­ves­tizam de aus­te­ri­dade, e o Go­verno por­tu­guês tão obe­di­en­te­mente pro­ta­go­niza – têm os seus li­mites ab­so­lutos de su­por­ta­bi­li­dade so­cial (ou de in­su­por­ta­bi­li­dade), que são também re­la­ti­vi­zados pela cor­re­lação de forças na luta de classes. No en­tanto, o ca­pi­ta­lismo é re­sis­tente, não a partir de de­ci­sões «ge­niais» vindas de ga­bi­netes con­for­tá­veis e as­sép­ticos, mas de di­nâ­micas que o seu pró­prio fun­ci­o­na­mento de­sen­ca­deia (no quadro da cor­re­lação de forças sempre mu­tável), e que lhe agravam as con­tra­di­ções. As ou­tras «causas con­tra­ri­antes» re­le­vantes são, dir-se-ia, ex­pe­di­entes que se juntam às pró­prias con­tra­di­ções in­ternas da lei, cujo es­tudo – no ca­pí­tulo 15.º da 3.ª secção do tomo VI – é de grande in­te­resse.

A he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro
e a es­pe­cu­lação

A uti­li­zação da «mer­ca­doria-es­pe­cial» di­nheiro, pas­sagem ine­vi­tável no pro­cesso his­tó­rico, veio al­terar as con­di­ções da troca e cir­cu­lação. Com o ca­pi­ta­lismo, «a bur­guesia de­sem­pe­nhou na his­tória um papel al­ta­mente re­vo­lu­ci­o­nário», e o di­nheiro ga­nhou um es­ta­tuto que con­funde o meio com o pró­prio con­ceito e fim da eco­nomia e, na ac­tual época do modo de pro­dução e for­mação so­cial, as formas fic­tícia e cre­di­tícia do di­nheiro to­maram uma re­le­vância di­fícil de prever. Basta re­cordar que se en­trou na se­gunda me­tade do sé­culo XX com a cri­ação de um sis­tema mo­ne­tário in­ter­na­ci­onal, es­ta­be­le­cido em Bretton Woods, no pós-guerra, que tor­nava o dólar em moeda in­ter­na­ci­onal, num pa­drão dólar-ouro subs­ti­tuindo o an­te­rior pa­drão ouro (e a im­por­tância da libra), o que apenas durou menos de três dé­cadas, e que, desde então – há, por­tanto, 40 anos – se veio ve­ri­fi­cando a des­ma­te­ri­a­li­zação do di­nheiro, por in­con­ver­ti­bi­li­dade das mo­edas emi­tidas;
por afas­ta­mento do cir­cuito mo­ne­tário do cir­cuito real;
por des­me­su­rada im­por­tância para o di­nheiro fic­tício e cre­di­tício.
Se a tal cor­res­ponde uma fi­nan­cei­ri­zação da eco­nomia, com o sis­tema ban­cário a servir de veí­culo de um ca­pital fi­nan­ceiro a he­ge­mo­nizar o fun­ci­o­na­mento da eco­nomia, criou-se as con­di­ções para uma di­nâ­mica es­pe­cu­la­tiva que, para parte do ca­pital total, per­mite a acu­mu­lação de ca­pital sob a forma di­nheiro (pas­sando de D a D’).
Assim se con­tra­riam, para parte do ca­pital, as con­sequên­cias da lei da queda ten­den­cial da taxa de lucro, não se ob­vi­ando, antes se agra­vando, as con­tra­di­ções pro­vo­cadas pelo fun­ci­o­na­mento do ca­pi­ta­lismo, e a(s) sua(s) crise(s).
Lá que há es­pec­tros, há!
Os es­pec­tros são como as bruxas, os fan­tasmas e te­mores, e ou­tras cri­a­ções se­me­lhantes.
Ha­verá os que, como o es­pectro do co­mu­nismo, nascem dentro dos seres (in­di­vi­duais ou co­lec­tivos) e que ga­nham vida pró­pria, e de que os seus cri­a­dores se não con­se­guem li­bertar; ha­verá os que ficam nos in­te­ri­ores e, in­te­ri­o­ri­zados, se de­sen­volvem ou alas­tram com o fun­ci­o­na­mento de quem (in­di­víduo ou co­lec­tivo) os vai cri­ando.

Os es­pec­tros de dentro,
das en­tra­nhas ca­pi­ta­listas


Co­me­çando por estes, a cha­mada (abu­si­va­mente) Eu­ropa de­monstra exem­plar­mente como tal acon­tece. Como res­posta «de classe», ca­pi­ta­lista, com as re­sis­tên­cias in­ternas (à classe), e as da luta de classes nessa frente, foi-se adap­tando, de alar­ga­mento em alar­ga­mento, de mer­cado in­terno em moeda única, de in­ten­ções (afir­madas) de co­esão em pe­ri­fe­rias sempre mais de­si­guais, de as­si­me­tria em mais as­si­me­trias, de ali­ci­a­mento para cré­ditos em en­di­vi­da­mentos fa­la­ci­osos, de des­norte em «des-Sul» a co­lo­nizar. De es­tra­tégia de Lisboa em Tra­tado de Lisboa, de Tra­tado de Lisboa em não-se-sabe-o-quê. Sempre cri­ando es­pec­tros e deles não se sol­tando. So­mando-os.
O euro (meio es­tra­té­gico para uma «certa» Eu­ropa cen­tral) trans­formou-se num es­pectro para «outra» Eu­ropa pe­ri­fé­rica, com ri­co­chete para o centro porque isto anda tudo li­gado. Do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista de Es­tado passou-se a me­ca­nismos trans­na­ci­o­nais, do ca­pital fi­nan­ceiro he­ge­mó­nico à es­pe­cu­lação, sem que os mo­no­pó­lios te­nham de­sa­pa­re­cido (nem os es­tados de que se servem), sem que a fi­nan­cei­ri­zação e a es­pe­cu­lação te­nham abo­lido a ne­ces­si­dade do fi­nan­ci­a­mento da eco­nomia.
É o es­tertor da besta!

O es­pectro que anda por aí,
com BI desde 1848


O outro es­pectro, o ori­ginal, iden­ti­fi­cado desde esse ano sim­bó­lico de 1848, nas­cido no ventre da besta e dela se­pa­rado para ser o seu co­veiro, vive e luta, certo de que a besta no seu es­tertor não se fina pa­ci­fi­ca­mente.
O fun­ci­o­na­mento ine­vi­tável e não hu­ma­ni­zável do ca­pi­ta­lismo, as con­tra­ten­dên­cias que pro­cura e os ex­pe­di­entes que in­venta para con­frontar leis, podem levar a actos tres­lou­cados, para os quais se foram cri­ando con­di­ções.
O ar­ma­mento e o mi­li­ta­rismo juntam-se à ne­ces­si­dade de des­truição das forças pro­du­tivas como saídas tem­po­rá­rias para as crises, com o enorme risco que advém do seu cres­cente poder de tudo ar­rasar.
Só o es­pectro cha­mado co­mu­nismo, esse que anda por aí com a sua luta, com a sua te­oria e a sua prá­tica, ali­ando-se a ou­tros e ou­tras que, não sendo ou não que­rendo ser parte do que ele é, também temem e com­batem a besta, pode en­con­trar saída para o ca­minho de de­sastre, e ir cri­ando as con­di­ções para o co­meço da His­tória.


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