A falsificação continua

Correia da Fonseca

Nada permitia esperar que o segundo episódio de «Depois do Adeus» fosse diferente do episódio inicial, isto é, fosse mais seriozinho, menos atrelado a uma versão contrarrevolucionária e falsificada dos acontecimentos de 74/75, ecoando menos os queixumes muitas vezes equivocados dos que, vindos das ex-colónias em geral e de Angola em especial, foram chamados de «retornados». E, a propósito deste último ponto, até talvez convenha lembrar que os portugueses, tendo estado em Angola ao longo de vários séculos, sempre de facto foram ali invasores e dominadores em terra alheia, embora as palavras não nos agradem, pelo que a vinda para Portugal de milhares de portugueses na sequência da descolonização foi de facto um regresso ao lugar de partida, um retorno, não à escala individual, historicamente minúscula, mas à dimensão de um movimento populacional. De onde a afinal explicável designação de «retornados»; e se ela veio contaminada por alguma conotação pejorativa, será adequado perguntar se o facto não terá a ver com a reputação, muitas vezes individualmente injusta, de práticas de brutalidade e hiper-exploração praticadas por colonos portugueses sobre nativos de facto escravizados na sua própria terra. Esta explicação, talvez excessiva no quadro de uma obscura crónica de televisão, tem a ver com momentos de «Depois do Adeus» em que jovens vindos de Angola rejeitam vivamente a designação de «retornados», preferindo a de «refugiados», o que na verdade também seriam. Faltava-lhes, porém, a explicação que hoje se tenta deixar aqui e cuja ausência serve, na série, para supostamente justificar mais uma razão de queixa dos que protagonizaram o fim do que de facto havia sido a ocupação portuguesa de Angola. Ainda, sublinhe-se, que fossem ocupantes de segunda ou terceira geração.

Um aparente livre-trânsito

Já muito espaço se gastou com ela, a explicação, e ainda falta abordar uma ou duas questões. Uma delas é a da verdadeiramente dramática penúria de meios financeiros que os vindos de Angola tiveram então de defrontar. O caso é que eles haviam sido enganados pela ditadura colonial-fascista que os havia convencido de uma unidade económico-financeira supostamente existente entre Portugal e Angola no interior do mítico «Portugal uno e indivisível», de onde decorreria uma unidade monetária. Era mentira, mais uma. Talvez em 74/75 já se tivesse perdido um pouco a memória de que a moeda angolana havia sido até alguns anos antes o «angolar», crismado depois para a designação de «escudo angolano», mas o certo é que nunca foi o escudo metropolitano (ou escudo tout court), moeda de uma outra economia e de facto de um outro país. De qualquer modo, é claro que a conversão entre as duas moedas, a angolana e a de Portugal, nunca poderia ser feita livremente e «ao par», o que tenderia a provocar uma grave situação de vazio monetário em Angola. Não obstante, «Depois do Adeus» não parece ter hesitado em utilizar essa «razão de queixa» para juntar mais uma pedrada a lançar contra a revolução de Abril. Quanto a esta, o segundo episódio da série prossegue a sua cruzada toda alimentada por grosseiras caricaturas da realidade e supressões de dados fundamentalíssimos. Entre estes, decerto seria indispensável para um quadro honesto das circunstâncias um esboço, ainda que mínimo, dos crimes de vária ordem e diversa dimensão praticados pelo regime derrubado não apenas aqui, em Portugal, mas também em Angola. A imagem da juventude do tempo continua a ser dominada na série pela militância de jovens do MRPP, o berço político de Durão Barroso e outros assim, enquanto o PCP combativo, empenhado, maduro e sereno, não existe naquele quadro. Num requinte de indução falsificadora, imagens autênticas de assaltos a centros de trabalho do PCP, identificados apenas como centros de trabalho «de esquerda», são introduzidos no episódio ao som da voz de José Mário Branco. Estes e outros exemplos possíveis não configuram apenas uma total desonestidade: sugerem também a segurança da mentira com prévio livre-trânsito e a eventual cumplicidade da própria estação pública. O que, escusado é dizê-lo, é muito grave.



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