Felizmente há luar

Luta pela Soberania e pela Constituição

Anselmo Dias

«Que posso eu fazer? Sim: que posso eu fazer?
Vê-se a gente livre dos fran­ceses, e zás!, cai na mão dos in­gleses!
E agora? Se aca­bamos com os in­gleses fi­camos na mão dos reis do Rossio...

Entre os três o diabo que es­colha...».

O texto acima, en­vol­vendo uma troika for­mada por go­verno, fran­ceses e in­gleses, é o início do I Acto da peça de te­atro «Fe­liz­mente há luar», es­crita em 1961, por Luís Sttau Mon­teiro.

Aquele mo­nó­logo é pro­fe­rido por uma per­so­nagem que se des­ta­cava dos seus con­ci­da­dãos por uma ele­vada cons­ci­ência sobre o am­bi­ente po­lí­tico vi­gente em 1817.

Nesse ano, em 18 de Ou­tubro, no Forte de S. Ju­lião da Barra, foi en­for­cado um pa­triota, o ge­neral Gomes Freire de An­drade, cujo corpo foi pos­te­ri­or­mente quei­mado; o que as chamas não de­vo­raram foi lan­çado ao mar.

Para mal dos ver­dugos a on­du­lação que se fazia sentir na foz do rio Tejo de­volveu à terra aquilo que ainda res­tava do corpo do he­róico ge­neral, cujo «crime» ra­dicou na ten­ta­tiva de pôr termo à pre­sença in­glesa no nosso País, per­so­ni­fi­cada pelo di­ta­to­rial Wil­liam Carr Be­res­ford.

Esse in­di­víduo, um ar­ro­gante ge­neral in­glês, co­ad­ju­vado por ofi­ciais in­gleses, não só co­man­dava o exér­cito por­tu­guês como tu­te­lava a acção go­ver­na­tiva em Por­tugal, pro­va­vel­mente com o amém da fa­mília real que se en­con­trava re­fu­giada no Brasil.

Com base nesta con­de­nação à morte, o dra­ma­turgo Luís Sttau Mon­teiro ide­a­lizou uma cena te­a­tral su­ge­rindo que, no de­curso da queima do corpo, ti­vessem emer­gido enormes la­ba­redas vi­sí­veis pelos ha­bi­tantes de Lisboa, de­sig­na­da­mente por Ma­tilde, a mu­lher de Gomes Freire de An­drade.

Ma­tilde, si­mul­ta­ne­a­mente trans­tor­nada pela morte do ma­rido mas muito lú­cida e ro­deada por amigos que lhe estão pró­ximos, en­ceta o se­guinte diá­logo:

«...Jul­guei que isto era o fim e afinal é o prin­cípio. Aquela fo­gueira... há-de in­cen­diar esta terra!Olhem bem! Limpem os olhos no clarão da­quela fo­gueira e abram as almas ao que ela vos en­sina.
Até a noite foi feita para que vís­seis até ao fim...
Fe­liz­mente – fe­liz­mente há luar».

O papel dos in­te­lec­tuais
na de­núncia da re­pressão

Do ponto de vista formal o es­critor fic­ci­onou um acon­te­ci­mento his­tó­rico que teve lugar no sé­culo XIX. Do ponto de vista ob­jec­tivo o es­critor ela­borou um li­belo acu­sa­tório contra a re­pressão fas­cista, sem deixar de re­ferir – com a ex­pressão «Fe­liz­mente há luar» –, que essa re­pressão ha­veria de acabar e que a Li­ber­dade ha­veria de re­gressar à nossa terra.

Os fas­cistas não per­do­aram a exis­tência da­quele livro e, como re­acção, não au­to­ri­zaram a sua re­pre­sen­tação, que só veio a ser pos­sível após o 25 de Abril.

Esta peça de te­atro – in­flu­en­ciada, na opi­nião de al­guns crí­ticos li­te­rá­rios, pelo te­atro de Ber­told Brecht –, tinha um des­ti­na­tário que todos per­ce­biam: o des­ti­na­tário era o re­gime fas­cista.

A crí­tica elo­giou a obra de Sttau Mon­teiro tendo Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues sa­li­en­tado o se­guinte; «Uma peça, cuja res­so­nância dra­má­tica o fu­turo – que não o mo­mento pre­sente – há-de glo­ri­o­sa­mente com­provar».

Esse texto con­tinua a manter toda a ac­tu­a­li­dade, não apenas no as­pecto da re­pressão ide­o­ló­gica, como em duas ou­tras ques­tões: a So­be­rania Na­ci­onal e a Cons­ti­tuição.

A questão da so­be­rania na­ci­onal está cla­ra­mente ex­pressa logo nas pa­la­vras ini­ciais do I Acto quando é re­fe­rida a in­ge­rência dos fran­ceses e dos in­gleses na po­lí­tica na­ci­onal.

A questão da Cons­ti­tuição não é re­fe­rida mas ela de­corre da ten­ta­tiva fra­cas­sada da cons­pi­ração do ge­neral Gomes Feire de An­drade, cons­pi­ração que ha­veria, cerca de três anos de­pois, de ser con­cre­ti­zada através da Re­vo­lução de 1820, com a qual foi pos­sível re­cam­biar Be­res­ford para o Reino Unido.

Tudo isto para dizer o quê?

Para re­ferir que, em­bora a his­tória não se re­pita, não deixa de ser ver­dade que há, com a de­vida res­salva, uma certa si­mi­li­tude no que con­cerne às ques­tões da so­be­rania na­ci­onal e ao papel da Cons­ti­tuição no pe­ríodo his­tó­rico atrás re­fe­rido e os dias de hoje, ques­tões que devem ser re­sol­vidas pela luta como a his­tória nos en­sina.

A his­tória, in­siste-se, não se re­pete, mas ela en­sina-nos muito.



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