Comentário

Cenas de um percurso errante

João Ferreira

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Há dias, nas páginas do Diário de Notícias (04/03/2013), as deputadas do BE ao Parlamento Europeu responderam a um texto que, semanas antes (11/02/2013), ali tinha deixado o autor destas linhas. O texto debruçava-se sobre uma resolução aprovada pelo Parlamento Europeu sobre «obrigações de estabilidade», votada favoravelmente por PSD, PS, CDS e BE. O PCP votou contra. Porque o conteúdo da resolução falava e fala por si, parte do texto limitava-se a fazer referência a vários dos seus parágrafos: da defesa da agenda europeia de «reformas estruturais» à exigência de cumprimento do Pacto de Estabilidade (com penalizações para os países «faltosos»), passando pela necessária «consolidação orçamental», pelos imperiosos esforços de «ajustamento», entre outras pérolas, tudo para prevenir o «risco moral» associado à emissão conjunta de «dívida europeia».

Sentiram pois as deputadas do BE a necessidade de responder a este texto. Fizeram-no em termos que, dado o incómodo que denotam e as evidentes contradições em que tropeçam as autoras, dispensam grandes comentários. O irrazoável arrazoado justificará não mais do que alguns breves esclarecimentos e, sobretudo, um convite sincero à leitura da resolução que o BE aprovou(1) mas que, vá-se lá saber porquê, tanto incómodo agora lhe causa.

Diz o BE ser «completamente falso» que as «obrigações de estabilidade» resultem de uma proposta da Comissão Europeia. A resolução aprovada, afiançam, «não tem por base nenhuma iniciativa da Comissão que, de resto, não existe».

Modestamente nos cumpre informar que sim, que existe.(2) As «obrigações de estabilidade» são, de facto, uma proposta da Comissão Europeia, que elaborou um Livro Verde onde pela primeira vez o conceito é explanado, de resto, em termos politicamente muito semelhantes àqueles que o Parlamento Europeu usa na sua resolução.

Se de mentira deliberada ou de incauta ignorância se trata, escolha quem souber.

Diz o BE que o PCP, ao votar contra, «votou com a direita europeia contra a esquerda europeísta». Pouco importa que assim se contradiga o que linhas antes se havia escrito – que a «votação dividida» teve «uma forte componente relacionada com os estados nacionais». Mais relevante será constatar quem considera o BE a «esquerda europeísta». Tendo em conta que, à excepção do BE (e de alguns deputados do Die Linke, da Alemanha), todos os restantes partidos que integram o Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (todos!) votaram contra a resolução que o BE aprovou, resultará daqui que, para o BE, a «esquerda europeísta» será provavelmente a social-democracia europeia (o grupo S&D, a que pertence o PS, o grupo dos «verdes», quem sabe se também os liberais). Ou seja, os mesmos que aprovaram todos os tratados, incluindo o mais recente Tratado Orçamental, todas as agendas neoliberais da UE, incluindo a «Estratégia UE2020», todos os acordos de livre comércio, etc., etc. (a lista seria longa e penosa).

Grande novidade, clamarão muitos, com ironia e acerto. Ainda assim, uma sempre salutar confissão.

O tom, entre o dramático e o patético, emprestado ao título da resposta bloquista – «Eurobonds: uma última hipótese para a Europa ou desistir agora?» – é bem ilustrativo da retórica e do programa político do «europeísmo de esquerda», a fazer lembrar a Declaração de Coimbra, de Seguro&Costa. É filho da imensa vacuidade e ambiguidade que caracterizam o discurso de «mais Europa», incapaz de apreender o sentido profundo do processo de integração, a sua natureza capitalista, intrinsecamente injusta e desigual. Incapacidade que resulta invariavelmente na legitimação dos seus alicerces – o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo.

A «última hipótese» terá sido invocada também quando, em 2010, o BE considerou «ser tempo de ajudar a Grécia», aprovando na Assembleia da República, com a direita e o PS, o «empréstimo» àquele país, num impressivo gesto de «solidariedade» que atirou o povo grego para a «condicionalidade» à moda do FMI.

Uma «última hipótese» terá justificado também o voto favorável do BE à resolução que exigiu uma «zona de exclusão aérea» na Líbia, abrindo portas a mais uma guerra de agressão da NATO, à «democracia» à lei da bomba, à destruição de um país e ao martírio do seu o povo.

Estas e outras que ficam por contar são, enfim, cenas de um percurso errante que, por opção própria, o auto-proclamado «europeísmo de esquerda» luso entendeu trilhar (quem sabe se inspirado na clarividência e coerência do seu mandatário nas últimas eleições europeias – para quem não se lembra, ex-candidato presidencial e cabeça-de-lista por Lisboa do PSD nas últimas legislativas).

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(1) E que pode ser lida aqui: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-%2f%2fEP%2f%2fTEXT%2bTA%2bP7-TA-2013-0018%2b0%2bDOC%2bXML%2bV0%2f%2fPT&language=PT

(2) E que pode também ser consultada aqui: http://ec.europa.eu/europe2020/pdf/green_paper_pt.pdf



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