Fim da Reforma Agrária e regresso ao latifúndio

Jorge Messias

«O des­taque la­tino-ame­ri­cano fica com o Brasil da era de Lula que re­gista o maior cres­ci­mento do nú­mero de mi­li­o­ná­rios: mais 11,3%, em re­lação ao ano an­te­rior. Entre 2003 e 2004, o nú­mero de mi­li­o­ná­rios bra­si­leiros au­mentou 7,7%. Em 2005, re­gis­tava-se no Brasil 109 000 mi­li­o­ná­rios ou seja, 0,5% da po­pu­lação total» («10.º Re­la­tório sobre a ri­queza mun­dial», Merry Linch & Cape Ge­nani).

«O Es­tado ne­o­li­beral visa subs­ti­tuir gra­du­al­mente as fun­ções do “Es­tado de Bem Estar So­cial” pelo cha­mado “Es­tado Mí­nimo”, re­sul­tante da pro­gres­siva ins­ta­lação da po­lí­tica ne­o­li­beral da ruína das po­lí­ticas so­ciais pú­blicas… As IPSS não tra­ba­lham vi­radas para o lucro no sen­tido ca­pi­ta­lista. As re­ceitas re­sul­tantes das do­a­ções, con­vé­nios, sub­sí­dios ou pres­tação de ser­viços são porém re­ver­tidas para a pró­pria ins­ti­tuição» (Selma Fros­sard Costa, «O Ser­viço So­cial e o Ter­ceiro Sector»).

«Esta his­tória sub­ter­rânea da ca­ri­dade, que é mar­cada pelos do­na­tivos pes­soais ba­se­ados em va­lores cris­tãos e cen­trados em re­la­ções de re­ci­pro­ci­dade com redes re­li­gi­osas, ad­quire agora vi­si­bi­li­dade no Brasil e com­bina-se com pro­gramas go­ver­na­men­tais e em­pre­sa­riais, de forma a pro­duzir trans­for­ma­ções per­ma­nentes das ar­ti­cu­la­ções reais que são a base de umas novas so­ci­e­dades civis» (Sil­vana Maria Es­corsim, «A fi­lan­tropia no Brasil: entre a ca­ri­dade e a po­lí­tica de as­sis­tência so­cial»).

Numa si­tu­ação mun­dial de­sor­de­nada e apa­ren­te­mente con­de­nada ao caos, é certo e sa­bido que re­gressam os fan­tasmas de ou­trora, ac­tu­a­li­zados, é certo, mas de qual­quer modo, an­tigos. Pouco a pouco, re­cu­peram cré­dito con­ceitos es­que­cidos já con­si­de­rados mortos para sempre: os po­bres não são po­bres, são em­bus­teiros; os ricos não só são mesmos ricos mas, também, há fi­lan­tropos que di­videm cris­tã­mente com os po­bres as suas ri­quezas; o ca­pi­ta­lismo, é certo que pode pro­duzir mi­séria… Cabe à so­ci­e­dade civil cristã de­sar­mada cor­rigir esses des­vios. Querem contar-nos, de novo, a lenda se­cular das rosas da Rainha Santa, por mi­lagre trans­for­madas em pão dos po­bres.

Um exemplo: na Era Me­diá­tica do Co­nhe­ci­mento, a me­di­eval ins­ti­tuição do la­ti­fúndio alastra de novo sobre a terra. Ani­mados por pro­jectos laicos ou cris­tãos,

os ne­o­li­be­rais in­ves­ti­dores nos mer­cados bem sabem que tais mé­todos são im­por­tantes para a re­tar­dação do ine­vi­tável avanço do So­ci­a­lismo.

Po­si­ções deste tipo mi­la­greiro en­con­tram-se na base do Agro­ne­gócio, uma nova téc­nica da glo­ba­li­zação que, na sua fase ini­cial, se de­sen­volve sem grandes ala­ridos em África, na Ásia e na Amé­rica La­tina. O ne­gócio cresce a olhos vistos. Só no Brasil, em 2012, deu lu­cros de quase 10 bi­liões de dó­lares e fez au­mentar em 24,3% a área pro­du­tiva total. O pro­jecto pa­rece gozar de um só­lido ponto de par­tida. Aliás, o agro­ne­gócio ul­tra­passa as fron­teiras do sim­ples co­mércio e as­sume po­si­ções ide­o­ló­gicas. O la­ti­fúndio me­di­eval é uma ideia a re­cu­perar. A Re­forma Agrária, uma pro­posta para des­truir e es­quecer. A luta de classes re­pre­senta uma falsa visão da re­a­li­dade, es­que­cida e ul­tra­pas­sada. Os po­bres devem, sim­ples­mente, pedir aos ricos, so­li­da­ri­e­dade e com­pre­ensão. Se o fosso entre po­bres e ricos existe é porque Deus o quer.

Es­cu­dada nestes prin­cí­pios, dou­tri­nais e ne­o­ca­pi­ta­listas, avança a ex­plo­ração brutal da terra (so­bre­tudo através do der­rube de cen­tenas de mi­lhares de ár­vores da flo­resta ama­zó­nica) e o uso de pro­dutos quí­micos nas se­me­a­duras da soja, do trigo, do café, do al­godão, etc., pro­dutos cujos preços de venda sobem cons­tan­te­mente nos mer­cados mun­diais. O custo da mão-de-obra é ir­ri­sório, visto que o pro­jecto dispõe, per­ma­nen­te­mente, de um imenso exér­cito de re­serva cons­ti­tuído por cam­po­neses sem terra, ín­dios das re­servas in­dí­genas, de­sem­pre­gados, imi­grantes, etc. Trata-se de uma grande massa de tra­ba­lha­dores in­di­fe­ren­ci­ados en­qua­drada por qua­dros de apoio lo­gís­tico ga­ran­tido, quer por equi­pa­mentos e es­pe­ci­a­listas de grandes mul­ti­na­ci­o­nais (ex.: Cargil, Con­ti­nental, Car­re­four, Goldman & Sachs, etc.), quer pelas redes so­ciais do ter­ceiro sector li­gado à Igreja ca­tó­lica o qual, só no Brasil, con­trola 276 000 fun­da­ções e as­so­ci­a­ções que em­pregam 1,5 mil mi­lhões de tra­ba­lha­dores e ga­rante re­mu­ne­ra­ções que to­ta­lizam 17,5 bi­liões anuais.

O agro­ne­gócio en­volve as élites mun­diais, desde mer­cados e Igreja, a go­vernos e à banca mun­dial. Tem duas áreas bem mar­cadas: a lu­cra­tiva e a fi­lan­tró­pica, ca­ri­ta­tiva e as­sis­ten­cial. Pro­cu­ra­remos des­crever, em es­boço, como é que toda esta má­quina fun­ciona.

 



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