Uma tragédia americana

Correia da Fonseca

O tema hoje pra­ti­ca­mente obri­ga­tório destas duas co­lunas é o aten­tado de Boston e a sua re­per­cussão na te­le­visão por­tu­guesa onde foi, como era ine­vi­tável, o tema do­mi­nante em todos os no­ti­ciá­rios du­rante vá­rios dias. Porém, não re­sisto à ten­tação de en­cimar o texto com um tí­tulo que foi o de um no­ta­bi­lís­simo ro­mance do norte-ame­ri­cano The­o­doro Dreiser, tra­du­zido para por­tu­guês e edi­tado no Brasil mas nunca em Por­tugal, de­certo porque o doutor Sa­lazar não gos­taria disso. O in­te­res­sante, e esta pa­lavra é es­cassa, é que o hoje es­que­cido de­poi­mento de Dreiser acerca da so­ci­e­dade norte-ame­ri­cana con­serva in­teira ac­tu­a­li­dade quanto ao es­sen­cial, de onde talvez possa in­ferir-se que o quase sé­culo de­cor­rido desde a pu­bli­cação do livro não al­terou os mitos e os ví­cios da so­ci­e­dade es­ta­du­ni­dense, antes os terá re­for­çado. O que Dreiser não terá pre­visto foi estes Es­tados Unidos quo­ti­di­a­na­mente acos­sados pelo medo do ter­ro­rismo cha­mado in­ter­na­ci­onal, con­sequência da en­tre­tanto po­ten­ciada in­ter­venção norte-ame­ri­cana nos quatro cantos do pla­neta, muitas vezes brutal, sempre opres­siva e também sempre se­me­a­dora do an­ti­a­me­ri­ca­nismo que, po­dendo ser pri­mário, nunca é con­tudo des­ra­zoado. E, à cau­tela, acres­cente-se que as bru­ta­li­dades «made in USA» pra­ti­cadas pelo mundo fora nunca jus­ti­fi­ca­riam, nem se­quer de longe, re­ta­li­a­ções de perfil ter­ro­rista como o de ainda não in­tei­ra­mente es­cla­re­cido 11 de Se­tembro de 2001 ou si­mi­lares. Sendo que este aten­tado de Boston, ainda em­bru­lhado em ne­vo­eiros e cir­cuns­tân­cias ab­surdas, pode também vir a ser con­ta­bi­li­zado como um acto ter­ro­rista com raízes ge­o­gra­fi­ca­mente dis­tantes. Como convém aos po­deres do­mi­nantes nos Es­tados Unidos e à xe­no­fobia local cujo re­forço po­derá ser uma boa ajuda para jus­ti­ficar o pros­se­gui­mento das pi­ores po­lí­ticas nos planos ex­terno e in­terno.

En­quanto se sabe pouco

Pas­semos, porém, ao que a te­le­visão nos vem en­si­nando acerca da tra­gédia de Boston. Que foi um acto hor­rendo, o que está fora de dú­vida. Que a po­lícia norte-ame­ri­cana é bes­tial (do in­glês «best», o me­lhor), tanto quanto di­a­ri­a­mente nos é de­mons­trado pelos filmes e sé­ries que a TV por­tu­guesa nos mete em casa, e de tal modo que mal o pre­si­dente Obama aca­bara de falar, di­gamos assim, e já os dois au­tores do mor­ti­cínio es­tavam iden­ti­fi­cados, lo­ca­li­zados, um deles aba­tido e o outro gra­ve­mente fe­rido. Que nem um nem outro eram de facto norte-ame­ri­canos para lá da na­ci­o­na­li­dade formal, mas sim eu­ro­peus e de uma Eu­ropa es­qui­sita, lá para os lados da Rússia. Que dos dois cri­mi­nosos, pelos vistos muito en­ge­nhosos, o que di­fi­cil­mente so­bre­vive (pelo menos no mo­mento em que es­crevo) tem graves fe­ri­mentos na gar­ganta e na boca que o im­pedem de falar. Que nem se­quer se trata de dois fun­da­men­ta­listas is­lâ­micos, em­bora se mur­mure acerca de even­tuais in­fluên­cias sobre um deles ou sobre ambos. Mais, pro­va­vel­mente, sobre o que morreu. De tudo isto, que não é muito, e de mais al­guma coisa que es­cape a este su­mário in­ven­tário dos dados di­vul­gados, não po­derá talvez dizer-se que é uma es­tória mal con­tada, mas pa­rece certo tratar-se de uma es­tória muito in­com­pleta e quase des­con­cer­tante. Mor­reram pes­soas ino­centes, há vá­rios mu­ti­lados e muita gente gra­ve­mente fe­rida, a ex­tra­or­di­nária efi­cácia po­li­cial foi ver­da­dei­ra­mente es­pan­tosa, a so­lene pro­messa de Obama feita poucas horas de­pois da tra­gédia viu-se ri­go­ro­sa­mente cum­prida, a co­esão dos norte-ame­ri­canos em torno de na­tu­rais sen­ti­mentos pa­trió­ticos terá sido re­for­çada pelo horror e pela in­dig­nação que o aten­tado sus­citou, mas quanto ao que po­derá de­signar-se como o âmago do acon­te­ci­mento não se sabe nada de con­creto. Um dia destes de­certo sur­girão in­for­ma­ções, lem­bremo-nos de que também houve um re­la­tório ofi­cial acerca do 11 de Se­tembro. Por mim, e não serei o único, estou an­sioso por saber enfim o que nos vão ex­plicar. E, se pos­sível, en­tender se essa ex­pli­cação pode ter con­sequên­cias na vida po­lí­tica dos Es­tados Unidos quer in­ter­na­mente quer no mundo. Isto é: se a tra­gédia serviu para al­guma coisa. E para quê.



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