Racionamento do acesso aos cuidados de saúde

Uma política criminosa

Jorge Pires (Membro da Comissão Política)

A pro­pó­sito da po­lé­mica em torno dos me­di­ca­mentos que os três ins­ti­tutos de On­co­logia ale­ga­mente re­cusam ad­quirir para o tra­ta­mento de al­guns dos seus do­entes, mas ao que pa­rece não estão au­to­ri­zados a fazê-lo por serem me­di­ca­mentos não ho­mo­lo­gados, im­porta chamar a atenção para o facto de que, neste como nou­tros casos se­me­lhantes (a não re­a­li­zação de exames de di­ag­nós­tico e tra­ta­mentos por ra­zões fi­nan­ceiras), as de­ci­sões que de­verão ser de na­tu­reza clí­nica estão a ser for­te­mente in­flu­en­ci­adas pelas ori­en­ta­ções do Mi­nis­tério da Saúde de ra­ci­onar - e não ra­ci­o­na­lizar, como diz o Mi­nistro da Saúde - e pelos cortes in­sus­ten­tá­veis que quase pa­ra­lisam os ser­viços.

O Go­verno quer criar um ser­viço de saúde a «duas ve­lo­ci­dades»

LUSA

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Nestes casos, como o que foi no­ti­ciado, sempre que se trate de me­di­ca­mentos au­to­ri­zados, é fun­da­mental que as de­ci­sões sejam to­madas com pon­de­ração (não se pode dizer nem nunca, nem sempre) e na base de cri­té­rios clí­nicos de­ci­didos em grupo nos res­pec­tivos hos­pi­tais e não ad­mi­nis­tra­ti­va­mente pelo Mi­nis­tério da Saúde. A ver­dade é que em si­tu­a­ções se­me­lhantes existem pres­sões enormes por parte das es­tru­turas do Mi­nis­tério no sen­tido de re­duzir custos, mesmo que daí possam re­sultar pro­blemas graves para os utentes. Não é por acaso que a ARS/​Norte es­co­lheu como um dos in­di­ca­dores para a ava­li­ação do de­sem­penho as­sis­ten­cial dos cen­tros de saúde, a pro­porção de idosos com 75 ou mais anos que tomam re­gu­lar­mente mais de cinco me­di­ca­mentos, num claro apelo ao ra­ci­o­na­mento.

Acon­tece que apesar de todos estes pro­blemas e da gra­vi­dade da si­tu­ação, al­guma co­mu­ni­cação so­cial tem vindo a dar co­ber­tura ao de­sen­vol­vi­mento de uma cam­panha que pro­cura por um lado fazer crer que a po­lí­tica de saúde deste Go­verno tem como grande ob­jec­tivo tornar sus­ten­tável o Ser­viço Na­ci­onal de Saúde (SNS) e, por outro, que tem sido pos­sível a este Go­verno fazer mais e me­lhor com menos di­nheiro. Pura men­tira.

Tão men­tira como quando querem fazer crer que em Por­tugal o SNS não é sus­ten­tável de­vido à re­lação entre a des­pesa pú­blica ex­ces­siva com a saúde e a ri­queza criada no País, afir­mação am­pla­mente des­men­tida quando com­pa­rada com a si­tu­ação de ou­tros países da UE e OCDE, esta úl­tima che­gando mesmo a clas­si­ficar Por­tugal entre aqueles onde há maior efi­cácia no in­ves­ti­mento pú­blico em saúde. O que pro­curam com essa men­tira é ocultar a na­tu­reza da po­lí­tica de saúde do ac­tual Go­verno e os seus ver­da­deiros ob­jec­tivos e, por outro, criar entre o povo por­tu­guês o am­bi­ente fa­vo­rável a novos cortes no fi­nan­ci­a­mento do Ser­viço Na­ci­onal de Saúde que o Go­verno e a mai­oria par­la­mentar que o sus­tenta se pre­param para de­cidir no âm­bito da «Re­forma Es­tru­tural do Es­tado» e de­pois in­cluir no Or­ça­mento do Es­tado para 2014.

Ne­gócio de al­guns ou di­reito de todos?

A si­tu­ação que se vive hoje neste sector e a sua pre­vi­sível evo­lução no curto prazo não pode, nem deve, ser ava­liada des­li­gada da ofen­siva mais geral sus­ten­tada po­li­ti­ca­mente nos «com­pro­missos» ins­critos no pacto de agressão e na si­tu­ação eco­nó­mica do País, mas so­bre­tudo na po­lí­tica de di­reita que tem vindo a ser con­cre­ti­zada pelo Go­verno do PSD/​CDS-PP, po­lí­tica que em muitos mo­mentos contou com o PS para a sua con­cre­ti­zação ou apoio. A ma­triz ide­o­ló­gica da opção deste Go­verno não en­gana. O ob­jec­tivo é criar em Por­tugal um «Sis­tema Na­ci­onal de Saúde» a duas ve­lo­ci­dades: um ser­viço pú­blico des­va­lo­ri­zado e sem meios, para os mais po­bres (o «Plano de pres­ta­ções ga­ran­tidas» como está con­sa­grado no pro­grama do Go­verno) e a en­trega à pres­tação pri­vada de cui­dados de saúde para os que possam pagar, no­me­a­da­mente através da pro­li­fe­ração de se­guros de saúde, que hoje já são mais de dois mi­lhões e das Par­ce­rias Pú­blico-Pri­vada.

Para os de­fen­sores do «Es­tado mí­nimo na saúde», o Es­tado deve aban­donar a sua função de pres­tador de cui­dados e ficar apenas com a re­gu­lação e o fi­nan­ci­a­mento. Para os grandes grupos pri­vados na saúde, o Es­tado deve as­sumir os custos, e as em­presas que estes grupos pos­suem, os lu­cros. Foi esta a ló­gica que levou ao sur­gi­mento das PPP na saúde que, como se ficou a co­nhecer re­cen­te­mente, vão custar ao Es­tado mais seis mil mi­lhões de euros. Para o grande ca­pital, a saúde hoje é en­ten­dida como uma grande opor­tu­ni­dade de ne­gócio. Tal como disse Isabel Vaz, Pre­si­dente do BES/​Saúde, «me­lhor só o ne­gócio das armas».

A única so­lução capaz de im­pedir que si­tu­a­ções de ra­ci­o­na­mento no acesso dos do­entes aos exames de di­ag­nós­tico e aos tra­ta­mentos de que ne­ces­sitam con­ti­nuem a pôr em causa a qua­li­dade de vida de mi­lhões de por­tu­gueses (e até a pró­pria vida a muitos deles) é, através da luta de massas, criar as con­di­ções que con­duzam à de­missão do Go­verno, à dis­so­lução da As­sem­bleia da Re­pú­blica e à mar­cação de elei­ções an­te­ci­padas, con­dição ne­ces­sária para que se abra ca­minho à cons­trução de uma po­lí­tica al­ter­na­tiva, pa­trió­tica e de es­querda, que con­sagra a exis­tência de um Ser­viço Na­ci­onal de Saúde uni­versal, geral e gra­tuito.




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