Português, escritor, comunista
Urbano Tavares Rodrigues é um escritor que marca a literatura portuguesa. Uma voz diferente, única, que se inscreve numa obra imensa e intensa. São mais de cem títulos publicados entre romances, novelas, contos, ensaios. Deixa um último romance, que será lançado pela sua editora em Dezembro, no dia 6, dia em que Urbano faria 90 anos. É um livro em que o escritor viaja pelas questões que são centrais na sua obra e da sua vida, como as lutas políticas e sociais, a sua militância sem quebras no seu partido de sempre, o Partido Comunista Português, a solidariedade, as relações humanas, mas também a sexualidade e o erotismo. «É um romance muito curto e onde está todo o espírito do autor», diz Cecília Andrade, acrescentando que apesar de as personagens não serem autobiográficas, as questões abordadas têm muito da experiência do autor.
Tem um prefácio escrito pelo próprio e que é uma despedida. «Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres. Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido hão-de acompanhar-me e tudo será luz.» Um prefácio que escreve numa fala dirigida a si-próprio, a todos nós mas que é sobretudo dirigida ao seu filho de sete anos, António Urbano.
Urbano Tavares Rodrigues nasce em Lisboa, mas vai para o Alentejo, para casa dos pais, grandes latifundiários em terras de Moura, a cidade branca que sempre o fascinará. Volta a Lisboa para estudar no Liceu Camões. Volta e traz com ele as memórias das gentes da sua terra com quem se sente solidário, o que o fará entrar muito jovem nas lutas oposição ao fascismo e, pouco mais tarde, a aderir ao Partido Comunista Português, o seu Partido até ao fim da vida, a bandeira que nunca deixou envelhecer e que, como queria, cobria o seu caixão.
Foi um homem de desmesuras. Na literatura, nos sentimentos, na sinceridade, na ideologia, nas intervenções, na vida. Num meio por vezes envenenado por coisas mesquinhas, Urbano erguia-se enorme no seu humanismo, na sua afabilidade e delicadeza, no modo como a todos ajudava e acarinhava. Na atenção que dava aos outros.
Quando o seu primeiro livro foi publicado, no rescaldo das querelas entre presencistas e neo-realistas, ninguém ficou indiferente a essa voz nova, incomum, mas intimamente ligada ao mundo que a rodeava. A sua obra é um enorme fresco multicolor, observando com aguda atenção a época em que vivemos, sempre empenhada em procurar transformá-la de forma positiva e humanista, que a fazem ocupar um lugar ímpar na literatura de língua portuguesa.
Professor, camarada e amigo
Foi preso diversas vezes. Foi proibido de leccionar depois de se ter licenciado em Literatura na Universidade Clássica de Lisboa. Esteve exilado durante muitos anos em França com a sua mulher, a escritora Maria Judite de Carvalho, onde foi leitor de português em várias universidades e se fez amigo de Albert Camus.
A sua coragem era conhecida de todos. O aspecto franzino ocultava uma estrutura atlética que cultivava sobretudo pela natação que lhe dava um enorme prazer. No meio são célebres as ocasiões em que colocou os seus punhos em acção, deixando nos adversários as marcas da sua indignação. Alguns desses episódios foram recordados por Baptista-Bastos como quando, numa das vezes em que foi preso pela PIDE, «Urbano, rodeado de “pides” virou-se para eles, e disse: “Antes que me batam, levam com esta cadeira”, e partiu-a em dois ou três daqueles “mariolas depois, é claro, levou uma monumental tareia”».
Outro dia, lembra ainda Baptista-Bastos, vários escritores e advogados da oposição juntaram-se à porta da livraria Sá da Costa, em Lisboa, e viram o Urbano a descer o Chiado na direcção deles. «De repente, vimo-lo voltar atrás e entrar na pastelaria Bénard e, dali a pouco, ouvimos um “catrapaz, catrapuz!” e fomos ver. Tinha sido o Urbano que se virara ao Manuel Múrias, crítico do jornal Diário da Manhã, [matutino oficioso do regime ditatorial] que era um homem corpulento de dois metros de altura. O caso tinha sido que o Múrias tinha feito uma crítica ignóbil a um livro da Maria Judite de Carvalho, então mulher do Urbano, na qual sugeria que, em vez de escrever livros, devia ficar em casa a fazer filhos. Urbano Tavares Rodrigues, desancou-o: “não era um homem para graças, era um homem de grande fibra”».
Mas esse era o mesmo Urbano que se comovia com as vicissitudes das vidas alheias, que foi sempre actuante e esteve sempre presente na defesa dos valores sociais. Que nunca esqueceu nem deixou de estar ao lado dos camponeses alentejanos que marcaram a sua infância. Que foi de uma coerência indefectível aos ideais comunistas.
Urbano Tavares Rodrigues é um romancista com uma obra ímpar, como já foi referido, na literatura portuguesa. Discreto, fez no fim da vida, numa entrevista que deu ao Ipsilon, um reparo mais que justo. O nunca lhe ter sido atribuído o Prémio Camões. Reparo justíssimo se desfilarmos os nomes dos laureados e comparámos a sua obra com a obra de Urbano. Isto de se ser comunista, de ser firme e convictamente comunista, tem os seus custos. O de Urbano Tavares Rodrigues foi o de estar nesse índex invisível que mostra como a cultura não é aquele território neutro onde os bem pensantes se reúnem expurgados de ideologia.
A leitura de Urbano Tavares Rodrigues é quase obrigatória. Mentor de várias gerações enquanto professor, conferencista e ensaísta, é na sua obra literária que se descobre, envolta numa rara qualidade literária e estética, a desmesura de uma obra que interpreta e interpela a vida, os sentimentos, a ideologia, com uma generosidade que, atrevemos a dizê-los, só um comunista humanista como Urbano era, é capaz.
Portugal perdeu um dos seus maiores escritores. O PCP um dos seus militantes de excepção. O povo português, em especial os camponeses alentejanos, um amigo firme e fiel.
A condição de comunista de Urbano Tavares Rodrigues foi uma das mais reconhecidas facetas da vida do escritor, que manteve ao longo de décadas uma dedicada e activa militância. No funeral, realizado no passado dia 10, a urna com o corpo do escritor estava coberta com a bandeira vermelha do Partido Comunista Português. Num emotivo discurso proferido nessa ocasião, José Casanova, director do Avante! e membro do Comité Central do PCP, destacou toda uma vida dedicada aos ideais da liberdade, da justiça social, da paz, da solidariedade, da fraternidade, do sonho de uma sociedade liberta de todas as formas de exploração e opressão. Ideais que tão bem colocou na sua obra, ao lado de outros poderosos sentimentos humanos como o amor e a paixão.
José Casanova sublinhou ainda a imensa coragem que Urbano Tavares Rodrigues colocou na sua intensa actividade política, quer no PCP quer no movimento da Paz ou na oposição democrática, enfrentando a prisão, as torturas e as represálias de que foi alvo. Uma coragem que manteve depois do 25 de Abril, e até ao fim dos seus dias, acrescentou o director do Avante!.
No funeral intervieram ainda Helena Roseta, vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, e a filha do escritor.