Uma reportagem a haver

Correia da Fonseca

No ecrã do televisor, enquanto me disponho a iniciar esta crónica, prossegue a sucessão de imagens dos muitos incêndios que vêm devastando o país e matando alguns dos que os combatem. Com maior ou menor intensidade, completada ou não com a tragédia de perdas humanas, é uma estória sinistra e já antiga, velha de décadas. Lembro uma das «Farpas» de Eça onde o escritor se refere, com ironia amarga, a uma série de incêndios que já então haviam resultado em avultados prejuízos materiais e, pior que isso, à morte de bombeiros. Foi há mais de um século. Agora, a televisão mostra-nos o espectáculo terrível das chamas que galgam os cerros em poucos minutos, o choro dos que vêem destruídos anos de canseiras, a frequente impotência dos que combatem a catástrofe até ao limite das forças quando não até à morte. Assistimos a entrevistas em que se fala do ponto em que se está no combate às chamas, da dimensão das perdas. E da origem dos fogos. Sabemos então que autoridades e peritos atribuem uma larga parte deles a actos criminosos. São os casos de «fogo posto», por vezes praticados com uma impressionante persistência indiciada por diversos reacendimentos ocorridos em plena madrugada e quase simultaneamente em zonas onde a intervenção dos bombeiros já vencera a difícil batalha e se passara à situação de mero rescaldo. Perante estas ou outras situações, o repórter pergunta então não só se os incendiários já estão detectados e presos, mas também que tipo de gente é essa que na verdade nos parece monstruosa. E a resposta é de que, em regra, são gente com anomalias mentais ou movida por ódios e invejas. Ou desempregada.

Uma nova pista

Fica a questão por aqui: aparentemente o repórter satisfaz-se com a resposta, retornará talvez para a frente de fogo a recolher mais imagens e mais dados de interesse para sua reportagem, mas é natural que em muitos telespectadores a curiosidade por quanto explique a autoria desses crimes não fique saciada. É certo que, mais palavra menos palavra, já em anos anteriores ouvimos as mesmas explicações sumárias, mas também por essa altura muitos de nós terão ficado a desejar saber mais. Falaram-nos porventura do fascínio e da atracção que o fogo pode provocar, e não nos é difícil compreender isso, mas a dificuldade está em aceitar que esse factor tenha poder bastante para levar à prática de actos que com alta probabilidade irão provocar desgraça e morte. Dizem-nos talvez de ódios, rivalidades e invejas, mas custa a compreender como essas motivações podem conduzir a actos criminosos que antecipadamente se sabe que irão ferir gente inocente e à margem das supostas razões dos criminosos. Há os perturbados mentalmente, é certo, mas referi-los não é mais que iniciar uma explicação que teria de conduzir-nos a um horizonte mais amplo de razões e desrazões. E há uma outra indicação, uma outra «pista», que parece ter surgido apenas este ano, o que só por si apela para reflexões e aprofundamentos: a indicação do desemprego como estando também na origem de casos de fogo posto nos campos e florestas portuguesas. Por tudo isto, que ainda não será tudo, parece claro que o esclarecimento das diversas motivações que determinam a acção dos incendiários não pode ser entendido como o mero desejo de satisfazer uma curiosidade de interesse secundário mas, bem pelo contrário, integra o universo das acções preventivas dos incêndios florestais em Portugal. Porque é preciso identificar os incendiários, prendê-los e puni-los, mas como condição prévia a essa fase é preciso identificar o conjunto de factores que os geram. Voltamos aqui à velha sabedoria que nos ensina que «não há efeito sem causa»: procuremos, pois, as causas para que possamos ser eficazes na eliminação dos efeitos. E não apenas para que essa procura seja eficaz, mas também para que possamos entender melhor o que se passa, bom seria que a televisão, por iniciativa da RTP ou de uma operadora privada, se aplicasse a fazer uma reportagem acerca das raízes humanas desta calamidade que todos os anos se abate sobre o país. Porque entender, sendo sempre saboroso, parece neste caso ser urgentemente necessário.




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