Um governo fora da lei

Vasco Cardoso

A de­cisão do Tri­bunal Cons­ti­tu­ci­onal sobre a cha­mada lei da mo­bi­li­dade, que na prá­tica es­can­ca­rava a porta a de­zenas de mi­lhares de des­pe­di­mentos na ad­mi­nis­tração pú­blica pro­mo­vidos através da mais ab­so­luta ar­bi­tra­ri­e­dade, pro­vocou, quer nos cír­culos de de­cisão do grande ca­pital, quer no Go­verno e nos seus pro­pa­gan­distas, uma re­acção di­rec­ta­mente pro­por­ci­onal à im­por­tante der­rota que so­freram. O ódio que foi des­ti­lado contra a Cons­ti­tuição nestes poucos dias, não só daria para en­cher um oceano, como, uma vez mais, pôs a nu a ori­en­tação cla­ra­mente anti-de­mo­crá­tica e re­ac­ci­o­nária da po­lí­tica de de­sastre que está em curso.

Entre as chan­ta­gens e as ame­aças a que o Go­verno re­corre sempre que os in­te­resses de classe que de­fende são postos em causa, houve também es­paço para o mais ras­teiro po­pu­lismo. Tal como um la­drão que de­pois de sa­quear as suas ví­timas lhes per­gunta de que lhes valeu a po­lícia, Passos Co­elho, na en­ce­nação me­diá­tica que tem pelo nome de «Uni­ver­si­dade de Verão» dis­parou: Já al­guém se lem­brou de per­guntar aos mais de 900 mil de­sem­pre­gados no País do que lhe valeu a Cons­ti­tuição até hoje?.

A uti­li­zação dos de­sem­pre­gados para atacar a Cons­ti­tuição e o re­gime de­mo­crá­tico é um acto de im­per­doável ci­nismo, mas é também uma de­mons­tração de que os ob­jec­tivos que o Go­verno e os grupos eco­nó­micos têm em mente passam, se não forem en­tre­tanto der­ro­tados, por impor a lei da selva nas re­la­ções la­bo­rais e ar­rasar a li­ber­dade e a de­mo­cracia que resta da Re­vo­lução de Abril.

Uma coisa é certa: tal como a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa apro­vada a 2 de Abril de 1976 foi re­sul­tado de dé­cadas de luta do povo por­tu­guês pela li­ber­dade e pela de­mo­cracia, também hoje, a de­fesa da Cons­ti­tuição – apesar de mu­ti­lada e sub­ver­tida pelas su­ces­sivas re­vi­sões do PS, PSD e CDS e pela po­lí­tica de di­reita que con­du­ziram –, irá pre­cisar de todos os braços e forças da­queles que não aceitam o rumo de ex­plo­ração e em­po­bre­ci­mento e as­piram a um País so­be­rano ba­seado «na dig­ni­dade da pessoa hu­mana e na von­tade po­pular» e em­pe­nhado «na cons­trução de uma so­ci­e­dade livre, justa e so­li­dária» (art.º 1.º da CRP).



Mais artigos de: Opinião

Tartufo e o PS

Molière, grande dramaturgo francês, escreveu em 1664 «Tartufo», uma sátira sobre a hipocrisia de um falso devoto, cujas palavras «santas» escondem a intriga para concretizar os seus reais intentos venais. O PS, cuja génese é estranha ao movimento...

A parte e o todo

O misterioso caso dos dados fornecidos ao FMI sobre a redução dos salários em Portugal está quase a transformar-se num enredo de romance policial, embora nos pareça, a avaliar pelo que se sabe, que a coisa não anda longe de um autêntico caso de polícia. Apurando...

A inconstitucionalização

Em apenas dois anos, a legislação governamental foi chumbada cinco vezes pelo Tribunal Constitucional (TC): a primeira em Abril de 2012, que pretendia criar o crime de enriquecimento ilícito (violava a «presunção de inocência»); a segunda três meses depois, que...

A força da opinião pública

Ao anunciar que iria ouvir o Congresso, Obama abriu um compasso de espera na escalada de guerra contra a Síria. Por momentos o mundo respira aliviado. Mas as forças da paz têm de permanecer vigilantes e ganhar ainda mais consciência da força de uma opinião pública...

Outra política para a floresta

Em doses su­ces­sivas de ima­gens cho­cantes, entra-nos di­a­ri­a­mente casa adentro o in­ferno de serras com­ple­ta­mente to­madas por la­ba­redas, des­truindo uma ri­queza in­cal­cu­lável; a an­gústia de quem vê os seus ha­veres, fruto de uma vida in­teira de es­forço e can­seiras, de­sa­pa­recer num ápice, tra­du­zida na ex­pressão re­pe­tida «ainda ontem lá passei e não tinha ar­dido e agora já está tudo quei­mado»; o horror de quem se vê obri­gado a sair de sua casa, sem ter a cer­teza de a en­con­trar, ao re­gressar, com­ple­ta­mente des­truída; a morte quase em di­recto de bom­beiros que, de forma co­ra­josa e de­ter­mi­nada, e quantas vezes com meios li­mi­tados, com­batem como podem esse monstro da na­tu­reza, re­a­li­dade que, este ano, atingiu nú­meros alar­mantes.