Contra as viúvas, marchar, marchar!

Correia da Fonseca

Muito bem sa­bemos todos nós que o Go­verno de­sen­ca­deou uma en­car­ni­çada ofen­siva de pi­lhagem fi­nan­ceira sobre a ge­ne­ra­li­dade dos ci­da­dãos por­tu­gueses, com par­ti­cular cru­el­dade quando as ví­timas são mais frá­geis, de­sig­na­da­mente ve­lhos e do­entes. De longe em longe, surge nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores um su­jeito a in­formar-nos de que ao Go­verno se lhe parte o co­ração ao fazer todos esses es­bu­lhos, isto é, ao co­meter todos esses crimes, que ne­nhum go­verno gosta de in­fligir so­fri­mentos ao povo que o elegeu e que assim se vê atrai­çoado, mas está a isso obri­gado por im­po­si­ções que vêm de longe e é for­çoso acatar, quer dizer, porque afinal se li­mita a cum­prir or­dens. A ex­pli­cação assim dada é irmã gémea da apre­sen­tada por boa parte dos cri­mi­nosos de guerra nazis quando le­vados a tri­bunal, mas essa in­có­moda se­me­lhança es­capa de­certo aos do ac­tual Go­verno por­tu­guês, que por sinal são uns gran­des­sís­simos de­mo­cratas, tanto e de tal modo que em­pre­en­deram a ta­refa de re­duzir a grande mai­oria dos ci­da­dãos por­tu­gueses, por igual, ao nível da mi­séria. En­tre­tanto pros­segue inin­ter­rupta a cas­cata de me­didas para pro­mover o de­sem­prego e a con­se­quente quebra de sa­lá­rios dos que ainda mantêm o seu posto de tra­balho, pelo que bem se pode dizer que en­quanto houver um por­tu­guês com em­prego es­tável a «fle­xi­bi­li­zação» con­tinua, adap­tação à ac­tu­a­li­dade de um velho es­tri­bilho do fas­cismo que ocupou o país du­rante dé­cadas e de que têm ma­ni­festas sau­dades al­guns ca­va­lheiros que a TV in­troduz em nossas casas. Se ainda as ti­vermos, é claro.

O as­salto aos de­funtos

Até há pouco, o as­salto apenas tinha vindo a ferir os ci­da­dãos por­tu­gueses vivos, de acordo aliás com o que é a prá­tica tra­di­ci­onal. Eis, porém, que há poucos dias um qua­li­fi­cado porta-voz anun­ciou que o Go­verno irá passar a agredir também al­guns por­tu­gueses de­funtos, não di­rec­ta­mente, por ma­ni­festa di­fi­cul­dade fí­sica, mas através das suas viúvas, a quem os ma­ridos pu­deram legar um sub­sídio de viuvez cris­mado de «sub­sídio de so­bre­vi­vência» em obe­di­ência à lei não es­crita, mas muito obe­de­cida, que manda adoçar as fór­mulas vo­ca­bu­lares. Trata-se de taxar também esses le­gados pois, pelos vistos, para pagar os juros agi­otas que go­vernos por­tu­gueses acei­taram pagar aos po­deres fi­nan­ceiros in­ter­na­ci­o­nais todo o di­nheiro é con­vo­cado, até o que de facto cons­ti­tuiu um pa­tri­mónio de ci­da­dãos que, tendo fa­le­cido, di­fi­cil­mente po­derão ex­primir a sua in­dig­nação. E muito me ma­ra­vi­lhou, como de­certo a muitos ou­tros ci­da­dãos te­les­pec­ta­dores, ouvir jus­ti­ficar a anun­ciada bru­ta­li­dade com a ale­gação de que ha­verá por aí muitas viúvas que além do tal sub­sídio de so­bre­vi­vência terão ou­tros ren­di­mentos, pelo que pelos vistos se jus­ti­fi­cará o as­salto. É como se o roubo na sua forma mais pri­mária e tra­di­ci­onal não fosse con­de­nável se o rou­bado tiver ou­tros bens além dos sur­ri­pi­ados. Pe­rante isto, fico in­cli­nado a es­crever que se es­tará pe­rante uma es­pécie de re­corde na­ci­onal, ou mesmo in­ter­na­ci­onal, da des­ver­gonha, mas coíbo-me: é que o Go­verno é, nesta mo­da­li­dade, como aqueles por­ten­tosos atletas que cons­tan­te­mente estão a bater os seus pró­prios re­cordes con­se­guidos pouco tempo antes. E é claro que aqui se fala de viúvas que vão ser as­sal­tadas porque, como é sa­bido pela ob­ser­vação di­recta da re­a­li­dade e con­fir­mado pelas es­ta­tís­ticas, as di­fe­renças de lon­ge­vi­dade de­ter­minam que o nú­mero de viúvas por­tu­guesas seja subs­tan­ci­al­mente su­pe­rior ao dos viúvos, estes também ob­vi­a­mente con­de­nados a so­frerem o es­bulho. Em rigor, bem se pode dizer que pe­rante tudo isto não há mo­tivo para sur­presas: con­fron­tado com a evi­dência da sua in­com­pe­tência com­pro­vada pelos re­sul­tados de­sas­trosos da sua acção ao longo de dois anos, o Go­verno não está dis­po­nível para res­peitar quais­quer li­mites. Con­tudo, es­quece-se talvez que é da pró­pria na­tu­reza das coisas que a pró­pria vida, a «re­a­li­dade» que ele por vezes se atreve a in­vocar por más ra­zões, im­ponha li­mites. Mais tarde ou mais cedo. Ou, como es­creveu Fer­nando Mi­guel Ber­nardes e José Afonso cantou, «…qual­quer dia…».



Mais artigos de: Argumentos

Os que gerem a fome e produzem a guerra

«A partir de meados do século XX avançou a chamada 'revolução verde'… O outrora agricultor livre tornou-se dependente dos chamados pacotes tecnológicos e das exigências dos mercados e entrou em recessão... Organizou-se o mercado da...

A deriva antidemocrática a propósito da limitação de mandatos

Seja qual for a posição que cada um assuma perante o princípio da limitação de mandatos – e a do PCP é de há muito conhecida pela razões e fundamentos que nos dispensamos de reapresentar – já tem outro significado, bem mais grave e inquietante,...