As areias movediças e o deserto da globalização

Jorge Messias

«Em Por­tugal, o quadro de re­fe­rência para o es­tudo das re­la­ções entre Es­tado e Ter­ceiro Sector é a iden­ti­fi­cação de um Es­tado so­cial fraco e de uma so­ci­e­dade pro­vi­dência forte... Existem fre­quentes re­la­ções con­fusas e al­ta­mente pro­mís­cuos entre ac­tores e ins­ti­tui­ções pú­blicas e não pú­blicas: Es­tado, Fa­mília, Igreja, Or­ga­ni­za­ções de Ca­ri­dade, etc.» (Sílvia Fer­reira, “Con­gresso Por­tu­guês de So­ci­o­logia”, ano 2009).

«Nas so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas, a mo­bi­li­dade re­pre­senta um meio para a re­pro­dução do ca­pital, uma vez que uma força de tra­balho livre e móvel se torna ne­ces­sária para o pro­cesso de acu­mu­lação. Neste sen­tido, uma massa de tra­ba­lha­dores po­ten­ciais ou imo­bi­li­zados, de acordo com as mo­vi­men­ta­ções do ca­pital, cons­titui um in­di­cador de de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista» (Gary Stanley Becker, membro da Aca­demia Pon­ti­fícia Ca­tó­lica das Ci­ên­cias).

«As Mi­se­ri­cór­dias sur­giram como Ir­man­dades de Ca­ri­dade vo­ca­ci­o­nadas para todas as obras de mi­se­ri­córdia. Elas ca­rac­te­rizam o ge­nuíno ca­risma das as­so­ci­a­ções de fiéis em Por­tugal, mesmo quando se trans­formam em or­ga­nismos que dos ca­rismas fun­da­ci­o­nais já nada sabem. Através de tantas vi­cis­si­tudes, é tempo para a sua re­no­vação, po­dendo muito bem serem um mo­delo para o sé­culo XXI!» (Pi­nha­randa Gomes, his­to­ri­ador ca­tó­lico, “Lu­si­tânia Sacra”, 1997).

Nos ce­ná­rios que cons­tan­te­mente mudam o nosso dia-a-dia su­cedem-se os mo­vi­mentos de sen­tido con­tra­di­tório. Os mesmos que in­vocam os va­lores de­mo­crá­ticos tra­ba­lham para a sua des­truição. É o que acon­tece, por exemplo, na área so­cial do Es­tado de­fi­nida na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica. Não se trata de travar o saque que produz a mi­séria; o cri­tério cen­tral é que a po­breza bem ge­rida pelo Es­tado pode ser fonte de ri­queza para al­guns. Por isso, para «em­balar o povo que é uma cri­ança», mul­ti­plicam-se as falsas pro­messas que a prá­tica mais tarde des­mente re­don­da­mente.

O go­verno por­tu­guês – cor­po­ra­tivo e ca­tó­lico – tomou o freio nos dentes. Corta e des­trói uni­ca­mente para obe­decer à noção de lucro de classe. Mas como, para ma­qui­lhar o rosto, lhe convém ser cristão en­ver­go­nhado, faz sis­te­ma­ti­ca­mente de­ma­gogia com os seus dis­cursos: a po­breza dos ci­da­dãos é a de­fesa dos in­te­resses na­ci­o­nais; se o de­sem­prego au­menta, o fu­turo mos­trará como foi um mal ne­ces­sário ao pro­gresso das novas ge­ra­ções; é pre­ciso re­pensar o pre­sente so­cial em função das grandes li­nhas da ética cristã e dos seus pa­ra­do­xais efeitos sobre as mi­sé­rias do País.

Os re­sul­tados estão à vista.

So­cial-de­mo­cracia e de­mo­cracia cristã do­minam na Eu­ropa e tiram aos po­bres para darem aos ricos. Se a troika rouba o te­souro por­tu­guês, este também sa­queia fe­roz­mente os ci­da­dãos, so­bre­tudo os mais po­bres, e põe de rastos os va­lores que afirma con­ti­nuar a de­fender: 82% dos sa­cri­fí­cios que exige ao povo são pagos pelos que menos re­cebem; au­mentam, bru­tal­mente, a dí­vida pú­blica e os nú­meros do de­sem­prego; e nunca foi tão cri­mi­nosa a dis­tri­buição da ri­queza. Os im­postos ci­lin­dram as pe­quenas eco­no­mias e passam ao lado dos lu­cros dos mais ricos; as pen­sões de mi­séria não es­capam aos cortes ca­pi­ta­listas que de­pois servem de al­mo­fada às ca­ta­dupas de es­cân­dalos pú­blicos que ir­rompem por entre agi­otas, po­lí­ticos, es­pe­cu­la­dores, ban­didos, ban­queiros e car­deais.

Por­tugal tem à volta de mi­lhão e meio de de­sem­pre­gados e de tra­ba­lha­dores em si­tu­ação mais que pre­cária. A eco­nomia cai em ruínas e a po­breza atinge um nú­mero cres­cente de fa­mí­lias. Cu­ri­o­sa­mente, em de­sem­prego e em po­breza pouco se fala. Seria in­có­modo para al­guns.

Neste e nou­tros as­pectos da vida na­ci­onal a Igreja ca­tó­lica ins­ti­tu­ci­onal é ré de alta traição. E não apenas no plano ético ou dou­tri­nário. A hi­e­rar­quia re­li­giosa ad­mi­nistra, ori­enta ou tem voz ac­tiva nas po­lí­ticas ca­pi­ta­listas e nas de­ci­sões do poder cen­tral. Cons­titui, no País, a mais po­de­rosa sede ar­gen­tária.

Como grande se­nhora do ca­pi­ta­lismo, con­trata e des­pede, liga ou des­liga com­pro­missos e lucra com os dramas hu­manos, em­bora negue co­meter tais crimes. Diga-se o que se disser, a fome em Por­tugal é ge­rida pela Igreja. Com lu­cros. O cha­mado Ter­ceiro Sector, do­mi­nado pelo Pa­tri­ar­cado, com­pre­ende mais de 40 000 ins­ti­tui­ções ca­ri­ta­tivas, dis­tri­buídas por todo o ter­ri­tório, nas quais o Es­tado de­lega as res­pon­sa­bi­li­dades so­ciais que lhe com­pe­ti­riam. São IPSS que não pagam taxas e con­tri­bui­ções ao Es­tado, ao abrigo de uma Con­cor­data que é um dos pi­lares prin­ci­pais do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista por­tu­guês.

 



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