Duas notícias

Correia da Fonseca

Já vão longe os dias em que os di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa evi­tavam dar-nos no­tí­cias da des­graça que já então la­vrava por todo o País: surgia neles, sim, uma in­for­mação ou outra, de uma fá­brica que fe­chava portas al­gures, de uma em­presa que emi­grava para longes terras, mas estes eram casos ainda con­si­de­rados como es­po­rá­dicos, ou quase, um pouco como fogos iso­lados no mato que ainda não pre­fi­guram os grandes in­cên­dios flo­res­tais. Esse tempo passou, como bem se sabe, e agora, quer por fi­adas de no­tí­cias breves quer por re­por­ta­gens mais ex­tensas, a des­graça que ocupa o País a mando dos «gau­lei­ters» en­car­re­gados de exe­cu­tarem as or­dens vindas do es­tran­geiro é o amargo pão quo­ti­diano dos es­pec­ta­dores de te­le­no­ti­ciá­rios e afins. Um pouco em con­tra­ponto, como que na con­vicção de que o riso mais ou menos alarve e doses com­pactas de «pim­bismo» cons­ti­tuem me­di­cação ade­quada ao evi­dente risco de de­pressão e, em mais séria hi­pó­tese, de re­volta, os ca­nais ditos abertos, so­bre­tudo os da ope­ra­dora pú­blica, pa­recem es­merar-se agora na trans­missão de pro­gramas pa­tetas até à náusea. Chegou a coisa ao ponto de até a RTP2, a tal que em prin­cípio terá a missão de trans­mitir uma pro­gra­mação in­te­li­gente ou que in­te­li­gente se pa­reça, ter vindo a trans­mitir um pro­grama su­pos­ta­mente de humor que in­clui mo­mentos de uma par­vo­eira de cortar o co­ração. E não se diga ou pense que toda esta in­di­gência é um dano co­la­teral da crise por costas muito largas que esta tenha: o mau gosto e a bru­teza no humor te­le­vi­sivo são in­fe­li­ci­dades que vêm de longe e que não podem en­con­trar abrigo ou des­culpa na ad­ver­si­dade do tempo que vi­vemos.

Os poucos e os muitos

Foi neste quadro que sur­giram há poucos dias, na te­le­visão e também fora dela, duas no­tí­cias de que se di­riam serem sur­pre­en­dentes se ainda vi­vês­semos em si­tu­ação de sermos sur­pre­en­didos. A mais no­tória delas foi a de que em Por­tugal, nestes tempos mais re­centes que para a es­ma­ga­dora mai­oria têm sido de em­po­bre­ci­mento e de­ses­pero, au­mentou o nú­mero de mi­li­o­ná­rios. A in­for­mação sus­citou algum com­pre­en­sível es­cân­dalo pú­blico e pro­va­vel­mente também al­guma in­veja que neste caso não cons­ti­tuirá pe­cado mortal, como rezam os ca­te­cismos, pois de­certo não será grande pe­cado que o es­fo­meado in­veje a mesa do que pode mimar-se quanto queira com ace­pipes, em sen­tido fi­gu­rado ou não. É certo que o País já tinha uns mi­li­o­ná­rios bem co­lo­cados no «top» mun­dial da es­pe­ci­a­li­dade, mas o re­forço nu­mé­rico da re­pre­sen­tação em tempos que até o cha­mado go­verno re­co­nhece serem di­fí­ceis e «de sa­cri­fí­cios» não es­tava de­certo nas ex­pec­ta­tivas do comum dos ci­da­dãos. Para mais, também sou­bemos que o nosso País está entre os que na Eu­ropa a não sei quantos têm o maior nú­mero de mi­li­o­ná­rios por qui­ló­metro qua­drado, o que acresce a sur­presa pro­vo­cada: pa­rece haver ra­zões para crer que, afinal, a crise que nos dizem andar a ser paga por todos não é im­pe­di­tiva do cres­ci­mento pa­tri­mo­nial de uns tantos, o que pode in­di­ciar que al­guma coisa está er­rada ou não anda a de­correr exac­ta­mente como nos contam. Já se sabia, é certo, do au­mento da compra de carros «topo de gama», su­pos­ta­mente de muitos ca­valos em tempos de vacas ma­gras, mas esta nova in­for­mação co­loca o mis­tério num outro nível. A outra no­tícia recém-vinda é a de que as pou­panças têm vindo a crescer nos úl­timos tempos: numa al­tura em que quem tra­balha ou tra­ba­lhou re­cebe cada vez menos pelo es­forço des­pen­dido, é muito de ma­ra­vi­lhar que o vo­lume dos di­nheiros afer­ro­lhados tenha au­men­tado. Almas muito bem pen­santes po­derão vir dizer que esse êxito é con­sequência de uma boa ad­mi­nis­tração da eco­nomia fa­mi­liar, da eli­mi­nação de gastos su­pér­fluos, de vir­tudes assim. Ou­tras almas, porém, são ca­pazes de co­meçar a per­guntar-se quem serão esses sá­bios ges­tores de re­cursos li­mi­tados que con­se­guem tão bom re­sul­tado. São ca­pazes até de fa­zerem mais per­guntas, de for­mu­larem hi­pó­teses. Como a de que talvez o que anda a so­brar a al­guns, poucos, es­teja a fazer ter­rível falta a ou­tros, muitos, que andam a ser es­bu­lhados.




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