Extraterrestres e estrangeiros

António Santos

Do outro lado da porta, esperava-me o representante do império que ferropeia o mundo com o terror das bombas e a chantagem do dinheiro. A minha mão tremeu antes de girar a maçaneta, mas na minha outra mão a carta já aberta compelia-me a entrar. Atrás da enorme secretária, um sujeito pequenino e calvo retrincou um cumprimento que não decifrei. Só quando me sentei à sua frente é que despegou os olhos computador. «Levante-se por favor» atirou-me impacientado. «Levante a mão direita» Obedeci. «Jura dizer a verdade e apenas a verdade em nome de deus?» Ainda pensei em explicar-lhe que não era religioso, mas o burocrata não me pareceu interessado e eu precisava de uma resposta. «Sim». Prosseguiu, recitando as novas perguntas maquinalmente: «É ou alguma vez foi espião?» «Desculpe?» «Tem que me dizer se alguma vez trabalhou para os serviços secretos de outro país.» Garanti-lhe que não, pensando cá para mim que se fosse mesmo um espião não lhe diria que sim. «Foi responsável por crimes contra a humanidade durante a II Guerra Mundial?» Tenho 26 anos, mas respondi negativamente a esta e a todas as outras perguntas que o funcionário me ia atirando da sua sebenta mental. Apenas mexia a boca, o resto do corpo imóvel passaria por manequim. «Alguma vez foi membro do Partido Comunista?» Fez-se um silêncio. Os seus olhinhos de ovelha, negros e opacos procuraram os meus. Atrás dele, a estátua de uma águia-americana em posição de ataque disparou-me também o seu olhar implacável. Senti uma espuma fria a formar-se no estômago. «Não» respondi por fim.

«Então o que o traz aqui?» Tinham-me recomendado que escrevesse as perguntas que lhe queria fazer, para não me esquecer de nada, mas foi precisamente disso que me esqueci. Então, entreguei-lhe a carta. Percorreu-a demoradamente com os seus olhinhos de ovelha. «O Sr. Santos não nos enviou o formulário, então demos por abandonado o seu estatuto de imigrante. Neste momento está em processo de deportação.» Expliquei-lhe que o formulário tinha sido enviado, que tinha um comprovativo dos correios. «Ai sim? Então pode fazer um pedido para reabrir o processo, enviando esse comprovativo em anexo e um cheque de 630 dólares. O problema é que até lá é um illegal alien. Não está autorizado a trabalhar nem a residir neste país.» Perguntei-lhe quanto tempo demorariam a corrigir o erro. Expliquei que esta carta me tinha custado o emprego. «Seis meses, um ano, às vezes mais. Para já tem que abandonar o país.» Perguntei-lhe então se poderia regressar quando o erro fosse corrigido. O funcionário-ovelha piscou os olhos e procurou qualquer coisa no computador: «Não. Se sair do país sendo ilegal, perderá quaisquer direitos de reentrada, independentemente da decisão de reabrir o seu processo.» Tinha vontade de lhe dizer que não posso ser ilegal, porque o verbo ser não pode ser ilegalizado, porque nenhum ser humano é ilegal, porque viver não é crime. Mas não valia a pena, o funcionário era inamovível, discorria sobre deportar-me sem pestanejar. Estou certo que se uma guerra nuclear erradicasse a América, a sua repartição ficaria intacta e ele continuaria imóvel, na sua cadeira.

Há pouco tempo, Obama disse algo que me chocou: que os EUA são a mais antiga democracia do mundo. Logo historicamente incorrecto, esqueçamos por momentos as necessárias questões sobre as credenciais democráticas da democracia burguesa representativa. A afirmação de Obama é grave porque infere que os EUA eram uma democracia há 150 anos quando tinham escravos. É grave porque se deduz que os EUA eram uma democracia há 50 anos quando os afro-americanos eram cidadãos de segunda. É grave porque se admite que os EUA podem ser uma democracia hoje, com 20 milhões de imigrantes sem quaisquer direitos. É grave porque corresponde à democracia ateniense de facto, que excluía e escravizava uma parte da população.

Os números mais conservadores apontam para 10 milhões de imigrantes clandestinos nos EUA, outros estudos falam do dobro. Embora a economia dependa deles, os illegal aliens que conseguem cruzar a fronteira vivem num clima de terror permanente. A qualquer momento podem ser detidos, deportados e separados das suas famílias. Se forem vítimas de qualquer crime, não podem chamar a polícia. Se o patrão não lhes pagar, não se podem queixar. Podem pagar impostos, no entanto, mas não podem votar. Outros não têm tanta sorte: cerca de 500 pessoas morrem todos os anos a tentar cruzar a fronteira com o México, outros 350 mil são capturados.

Quando saí da repartição, apercebi-me de que me tinha esquecido de fazer muitas perguntas ao funcionário. Gostava de lhe ter perguntado, por exemplo, se os primeiros colonos ingleses que desembarcaram do Mayflower tinham um visto de imigração para efeitos de trabalho, ocupação e genocídio; se as populações nativas considerariam os europeus illegal aliens; de que país europeu vinham os seus bisavós e muitas outras perguntas. Afinal sempre as devia ter escrito.



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