Nada a dizer

Gustavo Carneiro

Quase uma cen­tena de lí­deres mun­diais es­ti­veram an­te­ontem em Jo­a­nes­burgo a par­ti­cipar nas ce­ri­mó­nias fú­ne­bres de Nelson Man­dela. Entre os poucos que ti­veram opor­tu­ni­dade de aí dis­cursar conta-se – por ra­zões que não al­canço – o pre­si­dente norte-ame­ri­cano Ba­rack Obama, que se terá far­tado de mandar «re­cados» aos seus con­gé­neres para que, em honra do ho­me­na­geado, se com­pro­me­tessem com a «de­mo­cracia», a «li­ber­dade» e a «paz». Disse-o – sem se rir! – o líder do país que não só nada fez para ace­lerar o fim do odioso re­gime do apartheid como, de forma mais ou menos ex­plí­cita, o apoiou até ao seu es­tertor. Que é não só o mesmo cuja agência de contra-es­pi­o­nagem (a fazer fé no in­sus­peito New York Times) terá sido de­ter­mi­nante para que, em 1962, a po­lícia sul-afri­cana cap­tu­rasse Nelson Man­dela, como é aquele que o man­teve na sua lista de «ter­ro­ristas» pra­ti­ca­mente até ao final da pri­meira dé­cada deste sé­culo.

Po­derão al­guns ar­gu­mentar que Ba­rack Obama não era, em ne­nhum desses pe­ríodos, o pre­si­dente dos EUA, não po­dendo ser res­pon­sa­bi­li­zado por esses acon­te­ci­mentos. Mesmo dando de ba­rato o facto – ine­gável – de a po­lí­tica ex­terna norte-ame­ri­cana per­ma­necer imu­tável in­de­pen­den­te­mente de quem as­sume o turno de ser­viço na Sala Oval, de pouco ou nada valem as crí­ticas lan­çadas ao apartheid quando ao mesmo tempo se apoia com armas, fi­nan­ci­a­mento e co­ber­tura po­lí­tica um país, como Is­rael, que não só foi até ao fim um fiel aliado da África do Sul ra­cista, como impõe à po­pu­lação pa­les­ti­niana os mesmos mé­todos se­gre­ga­ci­o­nistas de que eram ví­timas os «não brancos» sul-afri­canos: as mesmas «au­to­ri­za­ções de per­ma­nência», os mesmos «ban­tus­tões», as mesmas acu­sa­ções de ter­ro­rismo, as mesmas pri­sões, os mesmos as­sas­si­natos, as mesmas tor­turas. Não foi Man­dela quem disse, no início dos anos 90, que a li­ber­dade então al­can­çada pelo povo da África do Sul só es­taria com­pleta quando os pa­les­ti­ni­anos con­quis­tassem a sua?

Da mesma ma­neira que nada sig­ni­fica o ar com­pun­gido e as de­cla­ra­ções de apego à paz quando se tem uma po­lí­tica para África que é, no fun­da­mental, de ín­dole mi­litar e se inau­gurou a nova versão do con­ceito es­tra­té­gico da NATO na agressão à Líbia, mer­gu­lhada hoje no caos, na ins­ta­bi­li­dade e na is­la­mi­zação ra­dical. Essa Líbia a quem ou­trora Man­dela tantas vezes re­cor­rera em busca do au­xílio po­lí­tico, eco­nó­mico e mi­litar de que o seu mo­vi­mento ne­ces­si­tava. E que dizer do blo­queio que per­ma­nece sobre o povo de Cuba, essa pe­quena ilha so­ci­a­lista que en­viou os seus me­lhores sol­dados para An­gola e que, der­ro­tando as tropas sul-afri­canas em Cuíto Cu­a­na­vale, operou a «vi­ragem para a luta de li­ber­tação do meu con­ti­nente e do meu povo do fla­gelo do apartheid» de que um dia falou Nelson Man­dela?

Obama, e com ele Ca­meron, Merkel, Ho­lande, Bar­roso ou Ca­vaco, nada têm a dizer sobre Man­dela. Ele não lhes per­tence. A sua luta, o seu exemplo, o al­cance e os li­mites do que deixa como le­gado são pa­tri­mónio ines­ti­mável dos povos, não dos seus car­rascos. Per­mitir que lhe sejam rou­bados e trans­for­mados em sím­bolos ocos e sem con­teúdo seria matá-lo de novo. E de vez.

 



Mais artigos de: Opinião

Venezuela – Uma vitória notável!

A direita reaccionária e golpista venezuelana viu na morte do presidente Chavéz, em Março deste ano, uma oportunidade para fazer reverter as conquistas que o povo venezuelano alcançou ao longo dos últimos 15 anos de transformações progressistas e revolucionárias. O...

Se a hipocrisia pagasse imposto

No meio desta profunda crise as contradições e os contorcionismos surgem à velocidade de um foguete. Muitos procuram apagar o rasto das suas responsabilidades, outros dissimular os objectivos e intenções que os movem, outros ainda disfarçar os seus propósitos. E todos...

As «virtudes» das privatizações

Quanto em 1989 o Governo de Cavaco Silva deu início à privatização da Banca, os argumentos aduzidos foram os que hoje se invocam para privatizar tudo o que é público: «O Estado é mau gestor, não tem vocação para gerir, o sector privado é...

Tempo de dar mais força aos valores de Abril

Prestes a ter­minar, 2013 fica de­fi­ni­ti­va­mente mar­cado como o ano em que se acen­tuou o rumo de de­sastre e de­clínio na­ci­onal, fruto de 38 anos de po­lí­ticas de di­reita, a que agora o me­mo­rando de en­ten­di­mento subs­crito pelo PS, PSD e CDS com a UE, FMI e BCE dão corpo, e que o Par­tido clas­si­ficou de pacto de agressão contra povo e o País. Um rumo de des­truição do em­prego, que em­purrou cen­tenas de mi­lhares de por­tu­gueses para o de­sem­prego e para a emi­gração, de­sa­pro­vei­tando cri­mi­no­sa­mente a ca­pa­ci­dade pro­du­tiva de ge­ra­ções in­teiras e con­de­nando hoje mais de dois mi­lhões de por­tu­gueses a vi­verem no li­miar da po­breza.

Mandela

Morreu Nelson Mandela, símbolo da heróica luta do povo sul-africano pela sua libertação, «um dos maiores revolucionários do século XX» como se lhe referiu o Partido Comunista da África do Sul no seu sentido elogio fúnebre. A sua memória...