Comentário

Um gigante com pés de barro

Maurício Miguel

Há um ano, a União Eu­ro­peia (UE) ga­nhava o Prémio Nobel da Paz. Na en­trega do ga­lardão, o Co­mité Nobel jus­ti­fi­cava-se afir­mando que a maior con­quista da UE era a sua «luta bem-su­ce­dida pela paz, pela re­con­ci­li­ação, pela de­mo­cracia e pelos di­reitos hu­manos», trans­for­mando a Eu­ropa «de um con­ti­nente de guerra num con­ti­nente de paz». O im­pe­ri­a­lismo so­corria-se da pouca cre­di­bi­li­dade do prémio Nobel da Paz para tentar dar uma áurea ima­cu­lada à UE e re­a­bi­litá-la para servir o papel de po­lícia bom que os se­nhores da UE agora lhe querem atri­buir.

O pro­cesso do Nobel da Paz da UE, como antes havia sido o de Ba­rack Obama, evi­den­ciou como se tenta fazer crer que uma arma de guerra pode ser afinal um actor de paz. O im­pe­ri­a­lismo sabe que não nos po­dendo con­vencer a todos, po­deria con­vencer al­guns. E além disso não ha­verá nada me­lhor para fazer a guerra do que vestir-lhe um fato de paz.

O mo­mento é pro­pício. O apro­fun­da­mento da crise na UE expõe as suas fra­quezas e de­pen­dên­cias: a perda de com­pe­ti­ti­vi­dade mun­dial, a de­pen­dência ener­gé­tica e de ma­té­rias-primas fun­da­men­tais para os pro­cessos pro­du­tivos. A ne­ces­si­dade da aber­tura de novos mer­cados e de do­mínio ge­o­es­tra­té­gico de vias co­mer­ciais e zonas de in­fluência é de­ter­mi­nante para travar o de­clínio eco­nó­mico da UE. A emer­gência de novas po­tên­cias eco­nó­micas no plano mun­dial, no­me­a­da­mente dos cha­mados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), exige uma es­tra­tégia de con­cer­tação no quadro da NATO, sem que no en­tanto sejam to­tal­mente di­ri­midas as con­tra­di­ções entre as po­tên­cias im­pe­ri­a­listas que a com­põem.

O Tra­tado de Lisboa de­fine um leque de pos­si­bi­li­dades e de ins­tru­mentos para a acção ex­terna da UE que até agora não tinha sido ainda in­tei­ra­mente ex­plo­rado. A Ci­meira da NATO que se re­a­lizou em Lisboa em 2010 reviu o seu con­ceito es­tra­té­gico e, entre ou­tras coisas, exigiu que, além dos EUA, os ou­tros mem­bros de­ve­riam também au­mentar o fi­nan­ci­a­mento e os meios ope­ra­ci­o­nais desta or­ga­ni­zação.

Apesar do si­lêncio se­pul­cral me­diá­tico ou de al­guma des­va­lo­ri­zação das de­ci­sões to­madas pelo Con­selho Eu­ropeu, é im­pos­sível es­conder os pe­rigos que de­correm das de­ci­sões sobre o dito re­forço da Po­lí­tica Comum de Se­gu­rança e De­fesa da UE (PCSD) e do apro­fun­da­mento da mi­li­ta­ri­zação da UE. É im­pos­sível es­conder que a UE é cada vez mais o pilar eu­ropeu da NATO e que as de­ci­sões agora to­madas de­correm da con­cer­tação es­tra­té­gica com os EUA no quadro da NATO, que de­fi­niram como sua pri­o­ri­dade a pre­sença na re­gião da Ásia-Pa­cí­fico.

Os se­nhores da UE querem fazer das suas fra­quezas força, quando cri­ticam as re­du­ções dos or­ça­mentos na­ci­o­nais de de­fesa, ao mesmo tempo que re­lançam a cor­rida aos ar­ma­mentos na UE e no mundo. O que o Con­selho Eu­ropeu de­cidiu foi es­ta­be­lecer um ro­teiro para mus­cular mais a mi­li­ta­ri­zação da UE, acen­tu­ando o seu papel como bloco im­pe­ri­a­lista, como po­tência com am­bi­ções he­ge­mó­nicas no plano re­gi­onal e mun­dial. Ar­ti­cu­lada com um con­junto de ins­tru­mentos fi­nan­ceiros para a acção ex­terna, acentua-se o seu ca­rácter re­pres­sivo e de in­ge­rência ex­terna, vi­sando au­mentar e acen­tuar a su­bor­di­nação das po­lí­ticas ex­ternas e dos or­ça­mentos na­ci­o­nais de de­fesa às pri­o­ri­dades da UE e da NATO – re­ti­rando so­be­rania e adul­te­rando o papel das forças ar­madas na de­fesa dos in­te­resses de cada país. Su­bor­dina-se ainda mais a in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica às tec­no­lo­gias mi­li­tares e às cha­madas tec­no­lo­gias de duplo uso, atri­buindo neste âm­bito um papel cen­tral à Agência Eu­ro­peia de De­fesa en­quanto pre­cursor do pro­cesso de gastos e fa­bri­cação de ar­ma­mentos. E dá passos para a de­fi­nição da cha­mada «cláu­sula de so­li­da­ri­e­dade» – in­tro­du­zida pelo tra­tado de Lisboa – que, à se­me­lhança da NATO, prevê que em caso de ataque ar­mado a um dos seus mem­bros, se de­sen­ca­deie a «de­fesa in­di­vi­dual ou co­lec­tiva» de um ou mais países da UE – o que de­monstra que a sua acção não é apenas vi­rada para o ex­te­rior mas que está atenta e pronta a agir para re­primir mo­vi­men­ta­ções so­ciais e po­lí­ticas que possam co­locar em causa o do­mínio dos mo­no­pó­lios e das grandes po­tên­cias no seu cres­cente poder co­lo­nial no seio da UE. Avança com a li­be­ra­li­zação do mer­cado da de­fesa na UE, que con­du­zirá a um pro­cesso de fu­sões e aqui­si­ções no com­plexo in­dus­trial-mi­litar, co­lo­cando ine­vi­ta­vel­mente pressão para um au­mento dos gastos mi­li­tares dentro e fora da UE.



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