A Hora das Gaivotas

de João Monge


Em todas as casas há um co­ração sus­penso

e uma ja­nela sobre o mar

As cri­anças re­co­lheram a casa

e o mar, sempre o mar, es­tende as longas crinas

de ca­valo azul nas pa­redes de pedra

 

É noite

É a es­pada lí­quida da noite

 

Chi­charro com pão dor­mido, ca­ma­rada

pão dor­mido

 

As gai­votas en­saiam o voo tres­lou­cado

dos pa­pa­gaios de papel

Pa­recem ter medo de poisar,

de dar des­canso ao seu co­ração sus­penso:

O medo de calar por dentro

 

– … e ra­ba­nadas com três dias

Tudo nos serve para medir o tempo

Eles não so­nham

 

É a mais lí­quida de todas as noites

Nada se con­forma no seu pró­prio des­tino:

As casas,

O mar,

As gai­votas,

Os ho­mens…

 

Tudo pa­rece con­vergir para o ninho ine­vi­tável

onde todas as coisas re­gressam à sua razão de ser:

A Li­ber­dade

(A Pa­té­tica de Tchai­kovsky es­corre de um velho gira-discos para as pa­redes do

re­fei­tório)

É tão louco este mundo, ca­ma­rada

1893, 1893. O ano da Pa­té­tica, o ano do Grito de Ed­vard Munch

O maior grito da hu­ma­ni­dade

O inex­pli­cável grito de todos nós

Em todas as casas há um co­ração sus­penso

e uma ja­nela sobre o mar

As cri­anças re­co­lheram a casa

e, pro­te­gidas pelos pais,

adi­vi­nham por de­trás das cor­tinas

um sinal que dê sen­tido a tudo

Nin­guém sabe o que es­pera

mas toda a gente es­pera em si­lêncio

É como se a terra sou­besse

que há dias em que o mundo tem de ser re­dondo

3 de Ja­neiro de 1960

Às sete em ponto da tarde

Adagio–Al­legro non troppo

Nada me passa na gar­ganta, só um grito mudo…

A es­trada ainda está de­serta, nem uma luz…

Mas ele há-de vir!

Somos 10, es­tamos con­tados

Con­temo-nos de novo:

Álvaro,

Jaime,

Jo­a­quim,

Carlos,

Fran­cisco,

José,

Gui­lherme,

Pedro,

Ro­gério,

Fran­cisco.

E eu, e tu, e quem atrás de nós vier

E todos os que hão-de nascer

Com uma côdea no céu-da-boca

É por isso que o mar es­palha a sua to­alha bor­dada

na praia, aos nossos pés

para, da sua eterna sa­be­doria, nos prendar com a nossa igual­dade

Al­legro com grazia

Pai, olha aquele carro, olha aquele carro

Apaga a luz, apaga a luz…

Vem com a mala aberta, de­va­ga­rinho, de­va­ga­rinho…

Vem do lado das docas…

Pai, re­para, as gai­votas pou­saram todas…

– … e parou em frente ao forte

É a hora das gai­votas

É a hora das gai­votas

O homem está a sair do carro, pai…

Sim. Vai fe­char a mala, cer­ta­mente…

Olha, as gai­votas, com o som da mala a fe­char, le­van­taram voo no­va­mente

São mis­te­ri­osas as cam­pai­nhas do des­tino

Al­legro molto vi­vace

Em todas as casas há um co­ração sus­penso

pelo medo e pela sau­dade

e uma boca amar­rada às pa­redes cegas

Fran­cisco, rasga esses len­çóis

que nos fi­zeram para su­dá­rios.

Todas as pa­la­vras são me­didas

como as sar­di­nhas

e quase nunca é do­mingo

Vá, tu sabes dar os nós de pes­cador

Une as tiras e dá-lhes um nó no meio

para que as mãos en­con­trem mais fir­meza

A ter­rina ocupa o centro da mesa

as cri­anças são ser­vidas pri­meiro

Apenas o ti­lintar das co­lheres

abre fe­ridas no si­lêncio das casas

E as cô­deas de pão dor­mido

quando es­talam no céu-da-boca

Somos 10, es­tamos con­tados

A corda tem de servir 10 vezes, ca­ma­rada

O jantar é em si­lêncio

Mas quando o ca­valo azul ga­lopa pelas mu­ra­lhas

ouve-se a sua pul­sação

a es­talar o co­ração das gentes

Pai, posso ir à ja­nela?

O carro já se foi em­bora. Não há nada para ver. Acaba a sopa

Há, pai! As gai­votas não se calam

E as ondas batem sem conta certa

Deixa-me apagar a luz…

Pai, pas­saram dois carros grandes mesmo agora. Um se­guiu em frente e o

outro está pa­rado à porta da vi­zinha com as luzes apa­gadas

Es­peram al­guém. É gente de bem

Fi­nale — Adagio la­men­toso

Não olhes para baixo, ca­ma­rada

E o mar, sempre o mar, es­tende as longas crinas

de ca­valo azul nas pa­redes de pedra

Pai, há uma corda a ba­loiçar na pa­rede do forte…

Em todas as casas há um co­ração sus­penso

e um lugar vazio à mesa

Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa

Não olhes para baixo

Pai, o homem pôs o carro a tra­ba­lhar…

Os gritos das gai­votas co­brem com um véu de tule

os ruídos dos ossos contra as pe­dras

É a na­tu­reza do lado certo

Pai, outro homem… e outro… e outro…

É o medo con­ta­mi­nado pela es­pe­rança

e a es­pada lí­quida da noite vi­rada de feição

Pai, ajuda-me… não en­tendo, não en­tendo…

É a hora das gai­votas, meu amor!

Poema (ma­gis­tral­mente) lido pela ac­triz Maria João Luís na re­cri­ação da fuga de 3 de Ja­neiro de 1960, re­a­li­zada junto ao Forte de Pe­niche pre­ci­sa­mente 54 anos de­pois.

 



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As pa­la­vras do poeta Jo­a­quim Na­mo­rado, que dão o tí­tulo a esta peça, adap­tadas pelo ma­estro Fer­nando Lopes-Graça para umas das suas «Can­ções He­róicas», re­sumem como ne­nhumas ou­tras o que se evocou nos pas­sados dias 3 e 4 em Pe­niche: a co­ragem e a de­ter­mi­nação em pros­se­guir a luta re­vo­lu­ci­o­nária quais­quer que sejam as con­di­ções, os obs­tá­culos e os pe­rigos. Foi pre­ci­sa­mente isso que fi­zeram os dez di­ri­gentes e qua­dros do PCP que, a 3 de Ja­neiro de 1960, pro­ta­go­ni­zaram uma das mais es­pec­ta­cu­lares e im­por­tantes fugas das pri­sões fas­cistas por­tu­guesas. Fu­giram, sim, para a pri­meira linha do com­bate pelo der­rube do fas­cismo, pela de­mo­cracia e pela li­ber­dade; fi­zeram-no quando tudo pa­recia per­dido. E no en­tanto, Abril acon­teceu. Porque eles fu­giram. Porque eles, e muitos ou­tros, lu­taram, per­sis­tiram e re­sis­tiram.

Os tempos mu­daram, é certo, mas também hoje (e como um dia es­creveu Ber­told Brecht) os «ti­ranos fazem planos para dez mil anos» e re­petem à exaustão que assim é e sempre assim será, que não há al­ter­na­tiva à ex­plo­ração, ao de­sem­prego, ao em­po­bre­ci­mento, à emi­gração. E uma vez mais os co­mu­nistas estão na van­guarda da luta po­pular, or­ga­ni­zando, es­ti­mu­lando e mo­bi­li­zando para que os va­lores de Abril es­tejam pre­sentes no fu­turo de Por­tugal.

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