Comentário

Lisboa à vista

João Ferreira

Passaram quatro anos desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Muitas e substanciais foram as alterações operadas na União Europeia desde então. Algumas directamente decorrentes da entrada em vigor do Tratado. Outras impostas a pretexto da crise da UE/Zona Euro – como o novo Tratado Orçamental e a chamada Governação Económica. Em qualquer dos casos, avançou-se pelo caminho cimentado por Lisboa e aberto por outros antes dele, com destaque para Maastricht.

Lisboa – assim chamado por aqui ter sido assinado, em 2007, durante a presidência portuguesa da UE (unindo Sócrates e Barroso num «porreiro pá» que ficaria para a posteridade) – alargou as competências exclusivas da UE (áreas onde os estados não riscam...), juntando à união aduaneira, às regras de concorrência no mercado interno e à política monetária na Zona Euro, a política comercial e a gestão dos recursos vivos marinhos. Aprofundou a submissão de esferas crescentes da vida social (os serviços públicos) ao mercado e à «livre concorrência não falseada». Lançou as bases para a militarização da UE. Entre muitas outras gravosas alterações.

Agora, em 2014, entra em vigor a nova relação de poder entre estados estabelecida pelo Tratado de Lisboa, que enquadra o processo decisório nos órgãos da UE. O poder dos grandes estados é substancialmente reforçado. A partir deste ano, os seis maiores países – com a Alemanha à cabeça – deterão 70 por cento dos votos no Conselho, enquanto que os demais 22 países (onde se inclui Portugal) contarão com apenas 30 por cento dos votos (a Portugal correspondem cerca de dois por cento, mais de sete vezes menos do que à Alemanha). Os quatro maiores estados – Alemanha, França, Reino Unido e Itália – têm o poder para bloquear qualquer decisão. O direito de veto por um qualquer país que entenda estarem em causa os seus interesses vitais foi substancialmente restringido. No Parlamento Europeu os mesmos seis países – com a Alemanha à cabeça – continuarão com mais de 50 por cento dos lugares.

Muitos dos que hoje verberam o poder excessivo da Alemanha estiveram com o Tratado de Lisboa desde a primeira hora. Forçaram a sua aprovação nas costas dos povos. Contrariando a sua vontade, quando necessário foi.

Assinado em 2004, o Tratado Constitucional, defunto antecessor do Tratado de Lisboa, não chegaria a ver a luz do dia, na sequência do seu chumbo em referendo pelos povos francês e holandês.

Não desistiram. O Tratado foi recauchutado e, após uma presidência alemã onde no essencial tudo foi acertado, aprovado durante a presidência portuguesa e rebaptizado – Lisboa.

Em 2005, no Programa do recém-empossado governo PS-Sócrates lia-se: «o Governo entende que é necessário reforçar a legitimação democrática do processo de construção europeia, pelo que defende que a aprovação e a ratificação do Tratado deve ser precedida de referendo popular». Rapidamente a promessa (que havia sido também feita durante a campanha eleitoral) caiu. Pressionado por quem manda, o PS mais uma vez dobrou a cerviz, deu o dito por não dito e mandou às malvas as preocupações com «o reforço da legitimação democrática». Tal como nos demais países da UE (com excepção da Irlanda, onde a Constituição obriga à realização de um referendo), o Tratado de Lisboa seria aprovado sem referendo, no recato do Parlamento, com o europeísta apoio e aplauso de PS, PSD e CDS.

Demonstrando que a falta de coluna vertebral é com frequência concomitante com a falta de vergonha, Sócrates justificou-se dizendo que o Tratado de Lisboa era diferente do antigo Tratado Constitucional, e que a promessa eleitoral e o compromisso do Programa de Governo valiam para este último mas não para o primeiro. Na mesma altura, pela Europa fora, os seus colegas dos restantes países da UE, denunciavam-no. Merkel reconhecia: «A substância da Constituição é mantida. É um facto». Zapatero, primeiro-ministro espanhol: «Não abandonámos um só ponto essencial da constituição (…). É sem dúvida alguma muito mais do que um tratado. É um projecto de carácter fundador, um tratado para uma nova Europa». Vaclav Klaus, presidente da República Checa: «Só foram operadas alterações cosméticas, o documento de base é o mesmo». Bertie Ahern, primeiro-ministro da Irlanda: «90 por cento [da constituição] continuam lá».

2014 deixar-nos-á mais perto da derrota deste Tratado e dos seus objectivos. Um dia, sobre os seus escombros, lembrar-se-ão, com alívio, estas e outras histórias, de vileza e de traição.




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