Ucrânia e Munique

Luís Carapinha

Na linha da frente das barreiras pontificam forças de cariz neofascista

Os desenvolvimentos da crise ucraniana (política, económica e social) dos últimos meses e semanas assumem extrema gravidade. Desde logo ressalta o brutal envolvimento e ingerência do imperialismo na vida da antiga República soviética. No pano de fundo da intervenção encoberta e dos fundos para o proselitismo e a desestabilização canalizados há mais de 20 anos, a desfaçatez da pressão política e de Estado exercida sobre Kiev e a sociedade ucraniana, após a suspensão da ruinosa Associação com a UE, ultrapassa todas as marcas. Entre ameaças de sanções, o corrupio de dirigentes das potências e países da NATO em Kiev é frenético. Só esta semana revezaram-se Catherine Ashton, responsável da política externa da UE, e Victoria Nuland, subsecretária do Departamento de Estado dos EUA (que em Dezembro distribuíra bolachas aos activistas aquartelados na Praça da Independência). No fim-de-semana, a ponte aérea da ingerência fez escala em Munique, sede de mais uma edição da conferência internacional sobre segurança que este ano contou com a participação especial dos dois principais rostos da «oposição» ucraniana. Na presença de figuras de proa dos EUA, UE e NATO e dos responsáveis da política externa de Moscovo e Kiev ali se tratou também dos destinos da Ucrânia. De Munique 2014 saem declarações de apoio, dos dois lados do Atlântico, à reforma constitucional na Ucrânia cozinhada com Iatseniúk e Klichko. E o anúncio bombástico de que os EUA e UE preparam um pacote de «ajuda» financeira de emergência a Kiev, sendo que o FMI até estaria disposto a suavizar algumas das exigências mais ferozes de austeridade em troca de cedências no plano político. Apesar das diferenças, em toda esta chicana nas costas dos interesses do povo ucraniano não deixa de se insinuar um inquietante paralelo com o pacto de Munique de 1938…

Mal chegado de Munique à – mal dita – praça Maidan (palavra que significa «praça» em ucraniano), Klichko exortou à formação de corpos de milicianos voluntários. Não é segredo que na linha da frente das barreiras e ocupações no centro de Kiev e dos assaltos às sedes dos governos regionais pontificam forças extremistas de cariz neofascista. Este é outro aspecto central da crise política ucraniana que o discurso farisaico de «defesa da democracia» dos EUA e UE não pode ocultar, mas cujo efeito transcende as fronteiras do país. Apoios financeiros e logísticos não faltam a estas hordas nacionalistas que colhem inspiração nas organizações criminosas que colaboraram com a ocupação nazi na II Guerra e cuja máxima representação institucional é o partido «Liberdade» (mais de 10% dos votos nas legislativas de 2012). Em várias regiões do Oeste da Ucrânia foi proclamado um poder paralelo, as chamadas «assembleias populares», em que não há lugar para os comunistas e todas as vozes dissonantes. Não espanta que um dos primeiros anúncios destes democratas respaldados por Washington e Bruxelas tenha sido a proibição do Partido Comunista (e do Partido das Regiões do, em muito, desacreditado presidente Ianukovitch).

Para um plano recuado cai a incontornável dimensão de classe. A capacidade do imperialismo e seus sequazes em instrumentalizar para o campo pantanoso do nacionalismo as sequelas do descalabro económico e social em que se afundou a Ucrânia pós-soviética é inseparável, nas complexas circunstâncias presentes, da ausência ou considerável debilidade do movimento sindical e da organização do proletariado e trabalhadores ucranianos. Sem o seu fortalecimento qualitativo, a Ucrânia continuará a enfrentar o espectro da divisão e ditadura, diluindo a sua soberania, rendendo-se ao domínio dos grandes monopólios e convertendo-se em espaço vital de uma perigosa agenda expansionista fixada para Leste.




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