Comentário

Do prefácio e do resto

João Ferreira

1. Ca­vaco abriu o livro. No pas­sado fim-de-se­mana, o jornal do re­gime deu à es­tampa, em pré-pu­bli­cação, ex­certos do mais re­cente livro do in­qui­lino do Pa­lácio de Belém (a os­ten­siva e rei­te­rada vi­o­lação das suas obri­ga­ções não levou, ainda, la­men­ta­vel­mente, ao que seria uma mais que justa acção de des­pejo...).

Sig­ni­fi­ca­ti­va­mente in­ti­tu­lado «o pe­ríodo pós-troika», o es­crito agora co­nhe­cido tem mé­ritos in­dis­cu­tí­veis.

Convém antes de mais es­cla­recer que, pese em­bora o ala­rido me­diá­tico, nada do que é adi­an­tado por Ca­vaco neste pre­fácio é pro­pri­a­mente novo. Por di­versas vezes, o autor ex­pendeu os ar­gu­mentos agora ali­nhados em livro. Por entre pun­gentes apelos ao con­senso, sen­tidas exor­ta­ções à «união na­ci­onal» da troika ca­seira, por mais do que uma vez Ca­vaco disse mais ou menos o que agora re­pete. Re­su­mi­da­mente: atenção que PS, PSD e CDS apoi­aram e apro­varam um tra­tado (o Tra­tado Or­ça­mental) e apro­varam le­gis­lação eu­ro­peia (os cha­mados six-pack e two-pack, que com­põem o pa­cote da Go­ver­nação Eco­nó­mica) que obri­gará um fu­turo go­verno, seja ele do PSD seja do PS (com ou sem o CDS), a se­guir as mesmas po­lí­ticas que este está a se­guir. E a fazê-lo por muitos anos.

No fundo, Ca­vaco tem dito, à sua ma­neira, o que Merkel afirmou, de forma la­pidar, quando jus­ti­ficou a ne­ces­si­dade do Tra­tado Or­ça­mental, di­zendo que pre­ci­sá­vamos na Eu­ropa de algo que ga­ran­tisse que «mu­dando os go­vernos, não mude a po­lí­tica».

É es­sen­ci­al­mente este o mé­rito do es­crito de Ca­vaco: de uma pe­nada, deita por terra as ilu­sões se­me­adas a res­peito do fim do pe­ríodo de vi­gência formal do pro­grama da troika. Em poucas li­nhas, ar­rasa com a pro­pa­ganda em torno da ale­gada re­cu­pe­ração da so­be­rania no mo­mento em que o re­lógio que Portas pôs na sede do CDS chegar a zeros (ai se o ri­dí­culo ma­tasse...). E deixa claro: com PS, PSD e CDS, juntos (nas di­versas com­bi­na­ções pos­sí­veis) ou so­zi­nhos, não ha­verá nem re­cu­pe­ração da so­be­rania, nem mu­dança de po­lí­tica. Claro que Ca­vaco se volta a as­sumir como cúm­plice e pa­tro­ci­nador ac­tivo do ca­minho se­guido. Mais, pro­jecta-o já, pelo menos, até 2035. Assim de­no­tando, na prá­tica, e mesmo ex­pli­ci­tando, com algum de­talhe, o con­teúdo e im­pli­ca­ções dos ins­tru­mentos a que PS, PSD e CDS qui­seram amarrar o País. So­bre­tudo, evi­den­ci­ando o grau de vi­o­lência neles im­plí­cito.

Senão veja-se, avisa Ca­vaco: sendo o valor da dí­vida pú­blica em 2014 su­pe­rior a 126 por cento do PIB, mesmo ad­mi­tindo va­lores de cres­ci­mento do PIB que há muito o País não co­nhece, para se poder atingir daqui por 20 anos as metas im­postas pela União Eu­ro­peia, le­vando a dí­vida pú­blica até ao pa­tamar dos 60 por cento do PIB, seria ne­ces­sário que o País re­gis­tasse, em média, um saldo or­ça­mental anual pri­mário (o que se obtém des­con­tados os juros) de cerca de três por cento do PIB. Agora, tenha-se em conta a vi­o­lência do Or­ça­mento do Es­tado para 2014, tenha-se em conta que este ano o tal saldo pri­mário, se­gundo as pre­vi­sões ofi­ciais, não an­dará acima dos 0,3 por cento do PIB, e ima­gine-se o fu­turo do País, o que seria a vida dos tra­ba­lha­dores e do povo, nas pró­ximas dé­cadas, se não se puser fim à po­lí­tica de sub­missão na­ci­onal em curso...

 

2. Na mesma edição em que di­vulga em pri­meira mão o pre­fácio de Ca­vaco, o órgão ofi­cial do re­gime ti­tula numa pe­que­nina no­tícia de úl­tima pá­gina: «Goldman pre­fere dí­vida lusa». Lendo a no­tícia, per­cebe-se que o banco que mais go­ver­nantes (e go­ver­na­dores) tem dado à União Eu­ro­peia «con­si­dera que as obri­ga­ções dos países da pe­ri­feria da moeda única vão manter um de­sem­penho su­pe­rior aos tí­tulos de dí­vida dos es­tados do nú­cleo do euro. Mais ainda, o Goldman Sachs pre­fere as obri­ga­ções por­tu­guesas em re­lação às ir­lan­desas». Um ex­ce­lente ne­gócio, por­tanto. Nada que não sou­bés­semos já. Mas que o Goldman Sachs vem agora lem­brar, em in­for­mação ac­tu­a­li­zada, aos «mer­cados» aos quais, Ca­vaco in­siste, há que dar si­nais po­si­tivos. E ha­verá sinal mais po­si­tivo do que este? Como num ba­lan­cete, de um lado os si­nais po­si­tivos, do outro fica o ne­ga­tivo: menos sete mil mi­lhões de euros de ser­viço de dí­vida, ex­tor­quidos ao País, aos tra­ba­lha­dores e ao povo, em 2014.

É só até 2035, ga­rante Ca­vaco...




Mais artigos de: Europa

Pelo direito de decidir

O Dia In­ter­na­ci­onal da Mu­lher foi as­si­na­lado com ma­ni­fes­ta­ções em vá­rias ci­dades de Es­panha em que par­ti­ci­param de­zenas de mi­lhares de ho­mens e mu­lheres.

 

Cortes custam vidas

Um re­la­tório pu­bli­cado na re­vista mé­dica bri­tâ­nica The Lancet acusa o go­verno grego e a troika de es­tarem a pro­vocar um recuo es­can­da­loso nos ní­veis de saúde da po­pu­lação.

Meio milhão com zero horas

O gabinete oficial de estatísticas britânico reconheceu que o número de contratos com zero horas é afinal muito superior ao anteriormente estimado. Como noticia o diário The Independent, na edição de segunda-feira, 10, a autoridade estatística decidiu alterar o...

Supremo aponta ilegalidade

Uma sentença do Tribunal Supremo de Espanha veio lembrar as administrações públicas de que não podem recorrer a desempregados para substituir trabalhadores efectivos ou para o desempenho de tarefas permanentes. O acórdão, divulgado na imprensa dia 7, indeferiu um recurso...

Violência vitima mulheres

Uma em cada três mulheres na União Europeia é vítima de violência, revelou um estudo da Agência para os Direitos Fundamentais (FRA), que realizou 42 mil entrevistas nos 28 estados-membros. Na apresentação oficial do trabalho, dia 4, a responsável pela...