Comentário

Cumplicidade com o «Big Brother»

Maurício Miguel

Confesso que ao ler o relatório do Parlamento Europeu (PE) sobre a «vigilância» massiva da Agência Nacional de Segurança dos EUA e de outras agências do mesmo tipo nos países da União Europeia me inquietei bastante. Não sendo nova, a ideia de haver indivíduos ou uma organização que se dedica a saber o que faz e o que pensa cada um de nós individualmente, em família, grupo ou colectividade organizada, é, para além de uma inaceitável invasão de privacidade, um acto antidemocrático e de intimidação. Com hesitações, comecei esta crónica, escrevi uma palavra, apaguei-a. Escrevi um parágrafo inteiro, voltei a apagar. Escrevi novamente qualquer coisa entre o arrazoado de palavras sem qualquer nexo da primeira ideia, logo uma frase, tudo me pareceu sem sentido, voltei a apagar. A página voltou a ficar em branco. Apesar de não ser propriamente um novato nas crónicas, acabei por ficar em stress, o tempo passava e a crónica já devia ter sido entregue. Faltaria o início do texto ou era a ideia de poder haver alguém que acompanhava todo este vai e vem de palavras e frases que era embaraçoso? Não conseguia concluir. Assustei-me com a ideia de ter alguém a monitorizar quantas vezes teclo, a velocidade a que teclo, a assistir aos meus dedos levantando-se e baixando-se lentamente na direcção de cada letra ou sinal, da tecla de apagar ou da tecla espaço. Talvez se o espião da NSA, do SIS ou de uma qualquer agência de serviços de informação, incluindo da própria União Europeia, designado para espiar o que digo, faço ou escrevo, partindo do princípio que outros interesses vigilantes não tenha, talvez esse espião, repito, me pudesse ajudar a resolver o problema. Interrogo-me se essa mesma entidade que desconheço não terá já definido o meu perfil. Ansioso quanto baste, perigoso subversivo enquanto membro organizado de um Partido Comunista. Isto partindo do princípio de que a pequenez da minha importância justificaria o direito a um espião, pensar que seria uma equipa já podia ser delírio, enfim alguém que num local recôndito, possivelmente com o recurso aos meios tecnológicos mais avançados, daqueles que são experimentados e promovidos nos filmes de Hollywood, se ocupasse a seguir todos os meus movimentos, as palavras que uso e as que me recuso a usar, as que somadas todas não traduzem nada, ou as que por serem ditas em código muito podem significar para quem as compreenda.

Noutros tempos, o espião encarregado de me seguir os passos estaria do lado de lá da rua, se eu espreitasse pela janela esconder-se-ia. E se fosse dos bons não o descortinaria entre a multidão, porque no meio de tantos transeuntes e sem que nenhum deles tivesse um ar suspeito, um ar de espião, com óculos escuros e chapéu, nada me faria pensar que era aquele ali que se escondeu por detrás de todos os outros que parecem entretanto também esconder-se, porque já fechei a janela com medo de ser visto e me confrontar com o meu espião. Vivendo nós tempos diferentes, seria grande a ingenuidade pensar que este tipo de espionagem tivesse desaparecido. Mas aqui tratamos dessa outra espionagem que nos «observa» a partir de longe, podendo estar aqui tão perto.

O relatório aprovado pela maioria do PE – direita e social-democracia – fez o favor de me informar sobre as minhas suspeitas, porque aí se afirma claramente que a NSA tem «acesso directo aos servidores centrais das principais empresas de internet norte-americanas» – leia-se Facebook, Twitter, Google, Apple ou Microsoft –, que pode «analisar conteúdos e metadados», «aceder a redes informáticas e telefónicas e a dados de localização», os «ataques direccionados aos sistemas de informação e a recolha e a conservação de 200 milhões de mensagens de texto por dia». Elucidativo do que é esta maioria do PE e da sua hipocrisia é a sua conclusão de que «uma recolha de dados de tal magnitude deixa dúvidas sobre se estas acções são apenas motivadas pela luta contra o terrorismo». Dúvidas, afirmam eles! Mas a cereja no topo do bolo vem a seguir, quando se afirma que «é possível a existência de outras motivações, incluindo a espionagem política e económica». É possível, afirmam eles!

Sempre me disseram que assistir a um crime e não fazer nada, é ser cúmplice. Pela minha parte aqui fica a denúncia da antidemocrática cumplicidade da maioria do PE com o «Big Brother» que nos procura reprimir e sobretudo intimidar.




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