A memória incompleta

Correia da Fonseca

Salvo melhor avaliação, parece-me que este ano a televisão portuguesa, quer dizer, o conjunto de canais abertos ou apenas entreabertos que a integram, nos falou mais do 25 de Abril de 74 do que em anos anteriores. E não apenas do 25 de Abril: também do longo tempo que sinteticamente e com alguma amarga ironia é muitas vezes designado por 24 de Abril, isto é, dos anos do fascismo puro e duro de Salazar e do fascismo supostamente «soft» de Marcelo. Porém, todo esse exercício de memória, em que aliás encontrei momentos que me agradaram quanto é sempre agradável encontrar quem nos fale, enfim, de realidades antigas que nunca deveriam ter sido remetidas para uma espécie de arquivo nunca revisitado, pareceu-me ferido por omissões importantes se não graves. Uma delas consubstanciou-se na ainda escassa e incompleta denúncia da acção da PIDE, antes e depois da sua crisma para DGS, dos seus métodos e dos seus crimes, de como a sua mera existência envenenou cada hora do quotidiano português sempre sob uma vigilância de tal modo apertada que bem se pode dizer que só entre as paredes do seu lar, e nem sempre, o cidadão podia sentir-se ao abrigo de denúncias que poderiam resultar na sua entrada nos calabouços da polícia política. Outra omissão teve a ver com a guerra colonial que durante treze anos condenou à morte milhares de jovens portugueses e milhares de africanos que combatiam pelos seus direitos, à invalidez muitos outros milhares de ambos os lados desse horror, e ao desprezo por Portugal por parte da chamada comunidade internacional. Bem se sabe que qualquer guerra é produtora de crimes e que outros países com páginas coloniais nas suas histórias incorreram em práticas sinistras e vergonhosas, mas parece legítimo sustentar que cada qual deve assumir o que foi praticado e que não é aceitável que, décadas passadas, ainda subsista como regra não escrita mas aceite que o regime que mandatou acções criminosas seja beneficiário de uma espécie de amnésia que se parece desagradavelmente com uma amnistia.

Uma infiltração, talvez

Porém, no conjunto de programas que melhor ou pior evocaram o 25 de Abril e também o tempo que o antecedeu, tenho julgado notar uma outra omissão que me parece grave e, pior do que isso, nada inocente: a que tem a ver com os dias que se seguiram ao dia em que a velha ditadura foi derrubada e que se prolongaram por meses, que em verdade ainda não se extinguiram. Porque como é bom que seja lembrado e que nem sequer se corra o risco de esquecê-lo, o 25 de Abril que o País comemora não é apenas uma data ou um fugidio dia no calendário, o que seria bem pouca coisa, nem sequer é apenas o dia em que cessou uma particularmente dura forma de opressão exercida sobre um povo: foi um momento de arranque para uma determinada forma de liberdade concreta enformada por concretas liberdades a integrarem o quotidiano português. E não era nada que pudesse ser suspeito de contrabandear terríveis subversões. Permita-se-me lembrar que décadas antes, em Janeiro de 41, o presidente dos Estados Unidos da América, então ainda não intervenientes na Segunda Guerra Mundial, definiu as quatro liberdades fundamentais que era preciso preservar: a liberdade contra a miséria, a liberdade contra o medo, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa (que inclui obviamente a liberdade de não ter qualquer religião). Não será de mais dizer que estas quatro liberdades estiveram integralmente no espírito do 25 de Abril e também não será de mais afirmar que nem todas elas estão hoje asseguradas em Portugal. Estavam, contudo, claramente presentes no projecto de Abril, projecto incumprido e de tal modo que chegámos à actual situação portuguesa. Pois bem: é essa presença no projecto e, é claro, na vontade do povo, designadamente esse decidido propósito de acabar com a miséria e, consequentemente, com os medos e as limitações que dela decorrem, que noto omitida em todas evocações do 25 que os diversos canais da televisão portuguesa têm vindo a fazer. Como se nestas evocações de Abril já estivesse infiltrada a vontade de celebrar Novembro.




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