A propósito do filme A Entrevista

O imperialismo e a Coreia

Jorge Cadima

«Pas­sámos boa parte da pri­meira me­tade de 1994 a pre­parar a guerra na pe­nín­sula co­reana. [...] Nós os dois, então no Pen­tá­gono, pre­pa­rámos os planos para atacar as ins­ta­la­ções nu­cle­ares da Co­reia do Norte e mo­bi­lizar cen­tenas de mi­lhares de sol­dados ame­ri­canos para a guerra que pro­va­vel­mente se teria se­guido». Estas pa­la­vras foram es­critas no Washington Post em 2002 (20.10.02), pelos dois prin­ci­pais res­pon­sá­veis do Pen­tá­gono no pri­meiro go­verno do pre­si­dente Clinton. O então vice-mi­nistro da De­fesa e co-autor destas pa­la­vras, Ashton Carter, foi re­cen­te­mente in­di­cado por Obama para ser o novo mi­nistro da De­fesa dos EUA.

A mo­nu­mental pa­tranha sobre os ale­gados «ata­ques in­for­má­ticos norte-co­re­anos contra a Sony» é mais uma ope­ração de pro­pa­ganda de guerra

Entre as ra­zões pelas quais o bom­bar­de­a­mento da cen­tral de energia nu­clear norte-co­reana de Yongbyon pelos EUA não se con­cre­tizou, está a firme opo­sição do então pre­si­dente sul-co­reano. A agência France Presse (24.5.00) deu conta da re­cusa de Kim Young-Sam em ser co­ni­vente com a des­truição do seu país e a «morte de 10 ou 20 mi­lhões de pes­soas». «Na­quela al­tura [1994] a si­tu­ação era re­al­mente pe­ri­gosa. O go­verno Clinton pre­pa­rava uma guerra», afir­mava em 2000 o ex-pre­si­dente, que alega ter dis­cu­tido com o pre­si­dente dos EUA ao te­le­fone du­rante 32 mi­nutos. «Disse-lhe que não ha­veria qual­quer guerra inter-co­reana en­quanto eu fosse pre­si­dente. Clinton pro­curou per­su­adir-me a mudar de opi­nião, mas eu cri­ti­quei os Es­tados Unidos por pla­ne­arem de­sen­ca­dear uma guerra com o Norte na nossa terra». Outro ex-pre­si­dente da Co­reia do Sul, Roh Moo-hyuan, con­firmou a uma te­le­visão sul-co­reana que um ataque mi­litar dos EUA contra a Co­reia do Norte es­teve muito pró­ximo de acon­tecer sob a pre­si­dência de Ge­orge W. Bush: «Na re­a­li­dade, quando fui eleito [em 2003] os de­fen­sores da linha dura e mesmo pes­soas em po­si­ções de res­pon­sa­bi­li­dade no go­verno dos EUA fa­lavam na pos­si­bi­li­dade de atacar a Co­reia do Norte. Senti-me de­ses­pe­rado e de­cidi que isto tinha de ser tra­vado por todos os meios» (CNN, 19.1.03). Ni­cholas D. Kristof, em ar­tigo no New York Times (28.2.03) com o tí­tulo «Planos Se­cretos e As­sus­ta­dores» es­creveu: «Algum do tra­balho mais se­creto e as­sus­tador em curso no Pen­tá­gono por estes dias é a ela­bo­ração de planos para uma pos­sível in­cursão mi­litar contra ins­ta­la­ções nu­cle­ares na Co­reia do Norte [...]. Até se fala da hi­pó­tese de usar armas nu­cle­ares tác­ticas».

Estas pa­la­vras de­ve­riam fazer re­flectir todos quantos par­ti­cipam de forma in­cons­ci­ente, ou se deixam se­duzir, pelas re­cor­rentes cam­pa­nhas anti-norte-co­re­anas. A mo­nu­mental pa­tranha sobre os ale­gados «ata­ques in­for­má­ticos norte-co­re­anos contra a Sony» é mais uma ope­ração de pro­pa­ganda de guerra, pro­du­zida nas mesmas cen­trais de de­sin­for­mação (é caso para dizer “nos mesmos es­tú­dios”) que nos trou­xeram ou­tras cam­pa­nhas tão men­ti­rosas quanto mor­tí­feras, tais como “as armas de des­truição em massa de Saddam Hus­sein”, “os bom­bar­de­a­mentos de Kha­dafi contra o seu povo” ou “os ata­ques com armas quí­micas de Bashar Al-Assad”. Na re­a­li­dade, tais cam­pa­nhas foram sempre a ante-câ­mara de grandes ope­ra­ções mi­li­tares dos EUA/​UE/​NATO contra países e povos (não contra ho­mens) que se re­cusam a obe­decer às or­dens im­pe­riais. Co­nhe­cemos as con­sequên­cias ca­tas­tró­ficas para os povos do Iraque, da Líbia e da Síria, das guerras re­centes de agressão im­pe­ri­a­lista. Co­nhe­cemos também as con­sequên­cias ca­tas­tró­ficas da guerra de agressão que os EUA con­du­ziram entre 1950 (faz agora 65 anos) e 1953 contra o povo co­reano. Como re­lata o norte-ame­ri­cano Gre­gory Elich (em Tar­ge­ting North Korea, www.glo­bal­re­se­arch.ca, 31.12.02) «no pri­meiro ano de guerra, em 5 de No­vembro de 1950, o Ge­neral Dou­glas Ma­cArthur or­denou a des­truição de “todos os meios de co­mu­ni­cação, todas as ins­ta­la­ções, fá­bricas, ci­dades ou al­deias” numa zona com­pre­en­dida entre o Rio Yalu [que faz a fron­teira entre a Co­reia e a China] e a frente de com­bate. [...] Em vá­rios mo­mentos da guerra, os EUA con­si­de­raram o uso de armas nu­cle­ares tác­ticas. [...] De acordo com o Ge­neral Curtis LeMay, “ar­ra­sámos pra­ti­ca­mente todas as ci­dades da Co­reia, quer do Norte, quer do Sul” e “ma­támos mais de um mi­lhão de civis co­re­anos e de­sa­lo­jámos vá­rios mi­lhões mais”». O também norte-ame­ri­cano autor Bruce Cum­mings, num elu­ci­da­tivo livro sobre a guerra da Co­reia e os seus an­te­ce­dentes (The Ko­rean War – A His­tory, The Mo­dern Li­brary, New York, 2010), es­tima as baixas co­re­anas em quatro mi­lhões de pes­soas, «das quais pelo menos dois mi­lhões eram civis». As con­sequên­cias duma nova guerra se­riam ainda mais ca­tas­tró­ficas, mesmo que esta se con­fi­nasse à pe­nín­sula co­reana. E é bem pro­vável que o im­pe­ri­a­lismo apro­vei­tasse um con­flito para visar o ad­ver­sário chinês.

A Co­reia do Sul não é hoje go­ver­nada por pre­si­dentes in­te­res­sados em es­ta­be­lecer o diá­logo e re­la­ções pa­cí­ficas com a Re­pú­blica De­mo­crá­tica e Po­pular da Co­reia, mas pelos fal­cões da “linha dura” de que fa­lava o ex-pre­si­dente Roh Moo-hyuan. A ac­tual pre­si­dente Park Geun-hye é filha do ex-di­tador Park Chung-hee, que pre­sidiu à Co­reia do Sul entre 1961 e 1978, e que era um re­pre­sen­tante clás­sico dos ser­ven­tuá­rios da ocu­pação mi­litar norte-ame­ri­cana. Por entre o si­lêncio das grandes ca­deias de te­le­visão, mais ocu­padas em trans­mitir a pro­pa­ganda de guerra dos EUA, o Su­premo Tri­bunal da Co­reia do Sul de­cretou há poucos dias, a pe­dido do go­verno, a dis­so­lução do ter­ceiro maior par­tido do país, o Par­tido Pro­gres­sista Uni­fi­cado, nas­cido do mo­vi­mento sin­dical e que nas úl­timas elei­ções (Abril de 2012) re­co­lheu 10,3 por cento (mais de dois mi­lhões) de votos, ale­gando que esse par­tido era uma «ameaça à ordem de­mo­crá­tica». Um de­pu­tado do PPU, Lee Seok-ki, foi con­de­nado a uma pena de prisão de nove anos por, nas pa­la­vras do ad­vo­gado norte-ame­ri­cano Inder Comar, «pro­ferir um dis­curso anti-EUA, ale­gando que os EUA eram o ver­da­deiro pro­blema na po­lí­tica sul-co­reana» (glo­bal­re­se­arch.ca, 31.12.14). O Centro Carter do ex-pre­si­dente dos EUA Jimmy Carter tomou po­sição contra esta con­de­nação «feita ao abrigo das dis­po­si­ções da res­tri­tiva Lei de Se­gu­rança Na­ci­onal, de­cre­tada du­rante a era da do­mi­nação au­to­ri­tária mi­litar, an­te­rior a 1987» (Carter Center, 31.12.14). A vi­ragem au­to­ri­tária na Co­reia do Sul não é bom sinal re­la­ti­va­mente ao que o im­pe­ri­a­lismo pre­para para a pe­nín­sula co­reana.

O filme e a ope­ração

A ope­ração que ro­deia o filme A En­tre­vista me­rece re­flexão. O filme é uma his­tória in­tei­ra­mente pro­vo­ca­tória sobre o as­sas­si­nato do di­ri­gente norte-co­reano Kim Jung-Un por agentes dos EUA. Mas a ope­ração me­diá­tico-po­lí­tica-pu­bli­ci­tária que acom­pa­nhou o lan­ça­mento do filme (e ga­rantiu a sua di­vul­gação) aponta para que este seja o pre­núncio dum ob­jec­tivo a con­cre­tizar na vida real. Obama e o FBI ale­garam de ime­diato que os ata­ques in­for­má­ticos de que a pro­du­tora do filme, a Sony, foi alvo e que le­varam à di­vul­gação de ma­te­riais con­fi­den­ciais na In­ternet foram obra do go­verno norte-co­reano e ame­açam “re­ta­li­a­ções”. Mas, em 31 de De­zembro, o site www.washing­tons­blog.com pu­blicou uma lista de 18 em­presas e es­pe­ci­a­listas em ciber-se­gu­rança que ques­ti­onam a versão ofi­cial. As dú­vidas ti­veram eco mesmo na im­prensa mais con­ven­ci­onal, como a Blo­om­berg e o New York Post (ambos em 30.12.14), avan­çando a hi­pó­tese al­ter­na­tiva de os ata­ques serem obra de ex­tor­si­o­nistas ou ex-em­pre­gados da Sony que, no pas­sado mês de Maio, des­pediu mi­lhares de tra­ba­lha­dores. Parte im­por­tante da his­tória está no con­teúdo de al­guns dos e-mails di­vul­gados após o ataque à Sony e que, se­gundo Gre­gory Elich (Global Re­se­arch, 31.12.14) in­cluiam uma men­sagem de Bruce Ben­nett da Rand Cor­po­ra­tion (um think tank do com­plexo mi­litar-in­dus­trial dos EUA): «Ben­nett foi con­sultor do filme e opôs-se a su­a­vizar o final do filme. “Tenho sido claro em afirmar que o as­sas­si­nato de Kim Jong-Un é a via mais pro­vável para o co­lapso do go­verno da Co­reia do Norte”, es­creveu [...]. Noutra men­sagem, o CEO da Sony Mi­chael Lynton res­pondeu: “Bruce – falei com al­guém muito ci­meiro nos Es­tran­geiros (de forma con­fi­den­cial). Con­cordou com tudo o que tens dito. Tudo”. Lynton também es­tava em con­tacto com Ro­bert King, en­viado es­pe­cial dos EUA para as Ques­tões dos Di­reitos Hu­manos na Co­reia do Norte, no que con­cerne ao filme». Outro autor norte-ame­ri­cano, Larry Chin (Global Re­se­arch, 27.12.14) acres­centa: «[O filme] A En­tre­vista foi feito com o en­vol­vi­mento di­recto e aberto da CIA e de ope­ra­ci­o­nais da Rand Cor­po­ra­tion, com o ob­jec­tivo ex­presso de de­ses­ta­bi­lizar a Co­reia do Norte. O actor e co-di­rector Seth Rogen ad­mitiu que tra­ba­lhou “di­rec­ta­mente com gente que tra­balha para o go­verno [dos EUA] como con­sul­tores e que estou con­ven­cido serem da CIA”. Con­ce­bido ini­ci­al­mente como uma his­tória a ter lugar num “país não es­pe­ci­fi­cado”, o co-di­rector da Sony Pic­tures Mi­chael Lynton, que também tem as­sento na di­recção da Rand Cor­po­ra­tion, en­co­rajou os re­a­li­za­dores a fa­zerem o filme ex­pli­ci­ta­mente sobre o as­sas­si­nato de Kim Jong-Un».

Em si­mul­tâneo com toda esta ope­ração me­diá­tica, os EUA e os seus ali­ados ha­bi­tuais pro­mo­veram na ONU re­so­lu­ções con­de­nando a RDPC por des­res­peito pelos di­reitos hu­manos e pe­dindo que os di­ri­gentes desse país sejam en­vi­ados para o Tri­bunal Penal In­ter­na­ci­onal (TPI). Pa­rece não haver li­mites para a hi­po­crisia e a falta de es­crú­pulos. Os mesmos países que (se­gundo o pró­prio Se­nado dos EUA) são cúm­plices duma rede global de cen­tros de tor­tura e morte ge­rida pelos EUA; do uso re­gular de drones para as­sas­si­natos extra-ju­di­ciais; de man­terem o pla­neta in­teiro sob es­cuta e vi­gi­lância e per­se­guirem quem os de­nuncia por tal facto; de pro­mo­verem fas­cistas, na sua guerra contra o povo da Ucrânia; de trans­for­marem vá­rias re­giões do globo numa enorme ca­tás­trofe hu­mana, com as suas in­va­sões e guerras ile­gais e com o seu pa­tro­cínio dos mais bár­baros bandos ter­ro­ristas esses mesmos querem agora con­vencer-nos que são de­fen­sores dos di­reitos hu­manos na Co­reia.

Os tam­bores de guerra
e a luta pela Paz

O ano 2015 co­meça sob os pi­ores aus­pí­cios. Um sis­tema ca­pi­ta­lista in­capaz de sair da pro­funda crise que ele pró­prio cavou, acentua o seu pendor de des­truição e morte. Os ve­lhos im­pe­ri­a­lismos euro-ame­ri­canos não têm mais nada para ofe­recer aos seus povos senão a mi­séria, a ex­plo­ração e a guerra. E para lidar com a ine­vi­tável re­sis­tência dos povos e com as po­tên­cias em as­censão, re­correm de forma cres­cente à vi­o­lência e à re­pressão. O im­pe­ri­a­lismo apenas co­nhece a lin­guagem da guerra, da men­tira e da pro­vo­cação para as­se­gurar a sua do­mi­nação e a ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores e dos povos do mundo. Na Co­reia como nou­tras partes do globo, este é o cerne da questão. E quem re­siste me­rece a nossa so­li­da­ri­e­dade. O povo co­reano, do Norte e do Sul da pe­nín­sula, terá uma pa­lavra fun­da­mental a dizer sobre o seu fu­turo. Tal como todos os povos do mundo. Por muito que os se­nhores do ca­pital e da guerra nos queiram fazer acre­ditar na sua in­ven­ci­bi­li­dade, a His­tória en­sina que os povos em luta podem al­terar o curso dos acon­te­ci­mentos, trans­for­mando as mai­ores vi­o­lên­cias do sis­tema ca­pi­ta­lista em mo­mentos de vi­ragem re­vo­lu­ci­o­nária na His­tória da Hu­ma­ni­dade.




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Fa­lemos então de Te­atro, a mais di­recta das Artes – seu ponto de con­fluência e ir­ra­di­ação, visto que os que para nossa des­graça mandam, quando (em pés­sima tra­dução de jargão tec­no­crá­tico) no­meiam os «ac­tores» querem apenas dizer pro­ta­go­nistas ou in­ter­ve­ni­entes num dado pro­cesso que nada tem a ver com o palco e sempre que falam de «ce­ná­rios» pre­tendem tão só, lá na sua, re­ferir-se a abor­da­gens de hi­po­té­ticas con­jun­turas.