Obscenidade

Anabela Fino

Num País onde até a ideia de ter filhos é precária, o Governo que tornou descartáveis os pais em potência no presente e no futuro próximo lançando-os no desemprego, reduzindo-os a quinhenteuristas ou mandando-os emigrar, deu agora em dizer que está preocupado com a quebra de natalidade e encarregou a maioria que o apoia na Assembleia da República de elencar umas medidas alegadamente para contrariar tal situação. A situação de falta de crianças, está bom de ver, já que quanto aos pais...

Costuma dizer-se que de boas intenções está o inferno cheio, mas no caso vertente até falar de «boas intenções» se torna difícil. De facto, o que a maioria levou a debate foram paliativos, como quem se propõe tratar com aspirinas o doente moribundo. A mais emblemática das medidas – porque profundamente reveladora da forma como PSD e CDS vêem o País – é sem dúvida a que admite a possibilidade de pais e avós, sendo funcionários públicos, poderem trabalhar a meio tempo, recebendo 60 por cento do ordenado. A proposta nem sequer é inovadora, pois tal possibilidade já existia: trabalho a meio tempo e 50 por cento do vencimento. Mas o que verdadeiramente importa sublinhar é que os partidos da maioria parlamentar consideram ser um «incentivo» à natalidade a redução de 40 por cento do salário. Das duas, uma: ou PSD e CDS acham que os salários são tão elevados que podem levar uma talhada de tal monta, ou estão positivamente a gozar com os portugueses.

Numa altura em que todos os indicadores revelam que Portugal foi o país da União europeia onde mais baixaram os custos do trabalho e o que teve o maior aumento da taxa de risco de pobreza e exclusão social no último ano (um aumento de 2.1 pontos percentuais), não pode ser séria uma proposta como aquela para «apoiar» a natalidade, que na melhor das hipóteses poderá abranger um reduzido número de famílias que já têm e/ou querem ter mais filhos e para quem a sobrevivência não constitui propriamente um problema.

Não podem ser sérios um Governo e uma maioria parlamentar que, depois de terem cortado brutalmente nas despesas de saúde – em 2014 foi 15 por cento inferior às de 2010 – e de terem reduzido em 30 por cento o apoio às famílias com filhos, o que fez com que um terço dos beneficiários tivesse perdido o acesso às prestações por filhos a cargo, vêm dizer estar apostados

no aumento da natalidade.

Tal como não é sério, num país onde o desemprego, o enorme aumento da carga fiscal, os cortes de salários e pensões, a pobreza pura e dura forçou filhos e netos a pedir o abrigo possível a pais e avós, falar de incentivo à natalidade quando se anuncia mais 600 milhões de cortes na Segurança Social e de novo o tecto para descontos e pensões para abrir o caminho às seguradoras privadas.

Se é certo que a natalidade não depende apenas das condições económicas das famílias, não é menos certo que um povo que conquistou com a Revolução de Abril o direito a uma vida digna já não aceita como perspectiva de futuro uma sardinha para quatro.

Não sendo de admitir que PSD e CDS ignorem tudo isto, a única conclusão possível é que já nada os inibe de tratar os portugueses como energúmenos. Mais do que ofensivo, é obsceno.

 



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