O cúmplice de Dylann Roof

António Santos

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Antes de Dy­lann Roof, de 21 anos, co­meçar o mas­sacre, sentou-se, du­rante quase uma hora, com o grupo de es­tudos bí­blicos da Igreja epis­copal Ema­nuel, o prin­cipal local de culto da co­mu­ni­dade afro-ame­ri­cana de Char­leston, Ca­ro­lina do Sul. Fun­dada há 199 anos por Den­mark Vesey, o or­ga­ni­zador do (que por pouco não foi o) maior le­van­ta­mento ar­mado de es­cravos da His­tória dos EUA, não foi um alvo ale­a­tório.

In­cen­diada por grupos ra­cistas e proi­bida du­rante a guerra civil, foi na Igreja Ema­nuel que se re­fu­gi­aram, na dé­cada de ses­senta, os gre­vistas dos hos­pi­tais de Char­leston. Mais tarde na dé­cada de oi­tenta e no­venta, foi também esta Igreja que aco­lheu os es­ti­va­dores em luta e sin­di­catos dos ope­rá­rios da in­dús­tria au­to­móvel. E foi também por todas estas ra­zões que Dy­lann Roof a es­co­lheu para pôr em marcha o seu plano de «fazer es­talar uma guerra ra­cial».

Mas não pros­si­gamos sem um ponto prévio de ordem à mesa: foram as­sas­si­nadas nove pes­soas, numa igreja, por ra­zões po­lí­ticas, le­vando a cabo, com frieza e pre­cisão, um plano ar­qui­tec­tado du­rante meses e quase nin­guém chama a isto ter­ro­rismo. Não há con­cen­tra­ções de lí­deres nas ruas de Char­leston nem capas de jor­nais onde se leia a pa­ran­gona «Eu sou Ema­nuel». Não se le­vantam pa­la­dinos da li­ber­dade, do es­tilo de vida oci­dental, nem (neste caso) do cris­ti­a­nismo. Para a co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nante, o «ter­ro­rismo» tem uma sin­gular ex­clu­si­vi­dade de autor que não au­to­riza, por exemplo, a ex­trema-di­reita, o fas­cismo ou o ra­cismo. Para esses casos, re­cor­remos então à pa­to­lo­gi­zação da vi­o­lência: diz-se «era ma­luco!» e en­colhe-se os om­bros. Mas afinal, por que razão Djokar Tsar­naev, que, ale­ga­da­mente matou duas pes­soas na ma­ra­tona de Boston é ter­ro­rista, mas Dylan Roof, que matou nove ne­gros, não? A res­posta é porque a bur­guesia dos EUA não se sente ater­ro­ri­zada quando são os ne­gros a morrer em aten­tados.

Ra­cismo e sin­di­catos

Não so­bram dú­vidas sobre a ide­o­logia de Roof. Está plas­mada num ma­ni­festo e es­pe­lhada em vá­rias fo­to­gra­fias em que o as­sas­sino exibe sim­bo­logia fas­cista e ban­deiras da África do Sul do apartheid, da Ro­désia e da Con­fe­de­ração. E é ver­dade que após 400 anos de es­cra­va­tura a cul­tura do ra­cismo está bem viva na Ca­ro­lina do Sul, que em­ble­ma­ti­ca­mente pre­serva a ban­deira da Con­fe­de­ração nos edi­fí­cios go­ver­na­men­tais. Mas o que ver­da­dei­ra­mente ex­plica o mas­sacre é a po­lí­tica eco­nó­mica da Ca­ro­lina do Sul.

Du­rante anos, este Es­tado su­lista foi iden­ti­fi­cado como um mo­delo eco­nó­mico a se­guir: a po­lí­tica de be­ne­fí­cios fis­cais, baixos sa­lá­rios e to­le­rância zero com sin­di­catos atraiu as fá­bricas da BMW, da Ho­e­chst, da Mi­chelin, da Bosch e da Adidas. Foi para as mãos ne­gras dos ope­rá­rios de Char­leston que a Bo­eing mudou a pro­dução es­tado-uni­dense do 737, em 2013, como re­ta­li­ação contra a ten­ta­tiva dos tra­ba­lha­dores de Washington cons­ti­tuírem um sin­di­cato. Para o grande ca­pital, o ra­cismo cum­priu, so­bre­tudo, um ob­jec­tivo eco­nó­mico: manter uma franja dos ope­rá­rios sub­missa, as­sus­tada e in­de­fesa para des­va­lo­rizar o tra­balho e criar cli­va­gens ar­ti­fi­ciais entre tra­ba­lha­dores.

Nos es­tados do Sul, este de­sígnio eco­nó­mico pro­duziu uma cul­tura de nor­ma­li­zação da vi­o­lência e uma tra­dição de des­res­peito contra a co­mu­ni­dade afro-ame­ri­cana. Dy­lann Roof não agiu so­zinho, mas na tra­dição ra­cista da bru­ta­li­dade po­li­cial, da per­se­guição dos sin­di­catos, da dis­cri­mi­nação nos lo­cais de tra­balho, da se­gre­gação e da es­cra­va­tura. O mas­sacre de Char­leston não é, pois, um acto iso­lado de um do­ente mental, mas sim o es­pasmo me­donho da cul­tura ter­ro­rista do ca­pital. Ou, por ou­tras pa­la­vras, o ra­cismo é sempre ter­ro­rismo e o cúm­plice rein­ci­dente é, uma vez mais, o ca­pi­ta­lismo.

 


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